Quando eu tinha constantemente a companhia de amigos gays,
vez por outra alguma menina reclamava da imensa quantidade de homens nas
baladas e da falta de ambientes com um número expressivo de mulheres,
eles respondiam que as casas para o público feminino só tinham uma semana de
duração porque as lésbicas se casavam no terceiro encontro e não saíam mais de
casa. Tudo acabava em gargalha e íamos impávidos e colossais sabe lá deus pra
onde, com intenções individuais muito bem definidas. Eram tempos bicudos,
não podemos dizer de chumbo porque a juventude colore, ilumina e aquece tanto
as doces bobagens quanto os humores ácidos e consequências amargas. O jovem é
dono tempo, é imortal, tem a seu favor o futuro onde ele imagina que terá tempo
suficiente para tudo resolver, tornar-se importante, “ser alguém” e ser feliz,
assim, como se no futuro fosse possível viver várias vidas de uma única vez. O
maior tesouro da juventude está muito bem guardado numa única palavra:
a-m-a-n-h-ã.
Se é verdade ou não que as lésbicas se casam no
terceiro encontro, não se pode afirmar, quando eu era apenas imortal,
basicamente me casava no primeiro e tenho nisso motivo de orgulho.
Quantas pessoas podem ter a certeza de ter encontrado a pessoa certa logo de
cara, na primeira olhada? Quantas pessoas têm peito para se arriscar assim num
amor à primeira vista? Ir em direção ao túnel escurésimo só porque avista (ou
pensa ter avistado) uma luzinha colorida bem lá no final ou porque ouve
sininhos e imagina uma explosão solar do outro lado daquilo que é incerteza e
insegurança? Coisas para deusas, benhê!
Qual seria a diferença substancial entre a paixão de
um namoro que não deu certo e a paixão de um casamento que não deu certo?
Papelada, filharada, família, burocracia e vergonha de encarar os que foram
contra e que depois que a vaca foi ao brejo, disfarçam a satisfação mas não
conseguem evitar o golpe de
misericórdia: “eu te disse, eu te avisei”.
Mas eu estou falando de um tempo em que ser gay era
descobrir-se amando, interessado ou envolver-se com pessoas do mesmo sexo
e por isso estar automaticamente expulso de casa, abandonado pela família , ser
olhado como potencial suspeito por todos os crimes nas redondezas. Ser
lançado num túnel escuro era default para qualquer pessoa que se declarasse gay
ou que tivesse trejeitos e atitudes que levantassem tais suspeitas e isso
independia do modelo escolhido para o relacionamento. Ddescobrir-se gay era
sentir-se a caminho do abismo. Namoro ou casamento implicavam nas mesmas
consequências sociais e com relação ao sentimento todos sabemos que o nome
atribuído ao relacionamento é o que menos importa. Se você era gay, não era sério,
não obtinha respeito.
Assim, nunca compreendi inteiramente as críticas
sofridas pelas pessoas que tomando um “pé na bunda” naquela fase inicial de um romance, que hoje é chamada de “estamos nos
conhecendo”, enchem a cara e cortam os pulsos da mesma forma que aquelas
que passam por este processo (de pé na bunda) na fase do namoro ou de
“casamento” já consolidado. Quando a
entrega é verdadeira, dói igualzinho, a diferença é prática: para onde levar os
cacarecos, objetos e pertences pessoais e, principalmente, onde
enfiar o corpinho naquelas horas entre o trabalho e a balada. É nessas horas
que amo os novelistas que criam um mundo onde uma pequena mala com meia dúzia
de roupas pegas aleatoriamente são suficientes para se viver tanto
debaixo da ponte quanto num apart hotel, numa casa de vila ou um apê em Paris.
Todas as pessoas sortudas estão nos folhetins com seus amigos que sempre têm
para oferecer para o sem-casa, sem-amor ou sem-vergonha uma confortável solução
de moradia e emprego.
A vantagem do gay de entrar e sair dos
relacionamentos pela ausência de vínculos legais lhes rendeu a fama de
promíscuos. O submundo oferecido ao gay para se divertir e se relacionar lhe
deram a fama de marginal. A “pegação” gay em vias públicas não me parecia muito
diferente da busca heterossexual por prostitutas, mas a “liberalidade” marginal
do gay rendeu para os héteros presos na legalidade ou consequência dos seus
relacionamentos um tremenda inveja. Inveja essa que o povo gay jamais
percebeu, por encontrar-se invejando a tribo heterossexual pelo seu
direito de atracar-se em público, beijar em público, paquerar em público e
porque não, transar em lugares públicos ou pelo menos ter lugares à margem (abençoada
peleas vistas grossas de todo mundo) para isso.
Bordéis nunca foram bem vistos pela sociedade e
eram pessimamente vistos pelas esposas que casadas tinham o direito de cuidar
da prole, das refeições da família, manter a pose de felizes debaixo de uma
saraivada de muitas outras obrigações,
dentre as quais para a grande maioria delas não estava assegurado o direito de
ter orgasmo. Os frequentadores de bordeis para lá se dirigiam na intenção de
conseguir diversão e orgasmos mais elaborados diante de parceiras com
atitudes mais “descoladas”, mas também não estava convencionado para as
mulheres de lá dos bordéis que elas poderiam ou deveriam ter
orgasmo. O ser humano que vive em sociedade precisa trabalhar, mas não
necessariamente sua atividade precisa ser prazerosa. O salário não precisa ser
bom, embora devesse ser, precisa existir e ser o suficiente para liquidar
as continhas do fim do mês ou dar margem de negociação para elas.
Mas eu estou falando de tempos bicudos onde atitude era
um diferencial para o modo de viver, e essa atitude não precisava ser clara ou
declarada, atitude era sinônimo de escolha mas nem sempre de afronta em se
assumir-se uma postura.
Nesse tempo, quando eu ainda era humana, até as
imposições eram frutos de escolhas, (embora sempre afrontasse) haja vista
a expressão “opção sexual”. O termo opção abrangia tudo aquilo que era
diferente e por conseguinte desaprovado pela sociedade. Havia a “opção pelo
casamento”, numa época em que a mulher que não se casasse adquiria
um estigma quase como uma tatuagem em lugar visível que gerava
repugnância, receio ou desconfiança. Se você que está
lendo isso tem menos de 20 anos vou dar uma breve explicação:
A mulher que não se casava, ficava “pra titia” , talvez
porque restava-lhe uma boa participação nos cuidados com os sobrinhos, afinal
nunca se desvinculou da mulher o papel de mãe. Ela era obrigatoriamente tia
solteirona. Para a mulher que se descasava por atitude própria ou porque
não tinha jeito mesmo (pé na bunda na fase casamento) havia o desquite –
naquela época não existia divórcio.
Desquite era a legalização
burocrática do descasamento, da separação mediante a qual os desquitados (homem
ou mulher ) não podiam casar-se de novo. Um dos problemas do desquite era que
muitos homens o evitavam, pois isso poderia incluir pagamento de pensões para
os filhos menores e para a mulher, não se assuste por isso, naquele tempo não
era comum mulheres trabalhando fora, mulheres ativas no mercado de trabalho
tinham para si o mesmo olhar social que tinham as mulheres que fumavam
(cigarros), que bebiam (social e moderadamente) ou que tinham a sorte de
encontrar um ambiente social onde pudessem exercer qualquer ato semelhante à
diversão.
Explicado isso, socialmente a mulher separada (com
desquite ou não) equivalia às prostitutas. A opção da mulher pelo casamento
começava quando desde meninas tinham como brinquedos infantis bonecas e
miniaturas de utensílios domésticos, brinquedos doutrinários muito instrutivos
e liberadores da imaginação das crianças de sexo feminino. Despertavam a
criatividade da criança para que ela pudesse sonhar em casar, ter filhos,
cuidar de uma casa. Realmente o casamento era a grande “opção” da maioria das
mulheres. Ok, vou fazer uma breve observação, muito pessoal é claro,
sobre casamento nesses tempos:
Se as mulheres usavam roupas recatadas (calças
compridas não eram recomendadas) e não iam à lugar algum, como encontrariam a
tampa-da-sua-panela?
Se a prescrição era casar-se virgem e manter-se
esposa pudica, como conseguir uma vida sexual satisfatória?
Quando
o casamento era de conveniência para mulher isso significava, ter um provedor e
escapar do risco de ficar pra titia.
Quando era de conveniência para a família
isso poderia significar agregar o nome familiar a um outro sobrenome tão
respeitável ou acumular mais poder, pouco importando o que pensava a noiva ou
como ela se sentia ou o que ela pensava a respeito do futuro noivo e
futura família que se tornaria a sua família (dela) .
Bem, essa explicação
renderia uma outra postagem, portanto vamos resumir que restava às mulheres
beijar o sapo com dedos cruzados para que virasse príncipe e ponto.
Tempos bicudos em que se caminhava para o abismo ou
túnel escuro sonhando com um dia radioso de primavera lá embaixo (do
abismo) ou lá do outro lado (do túnel). Como nos contos de fadas, o
príncipe que nunca se viu mais gordo e quando se via não se pegava, faria
a mulher feliz assim mesmo, pois naquela época acreditava-se (não me
pergunte quem, mas posso deduzir que mulheres mal amadas, frustradas, rindo por
fora doloridas por dentro por sacrificar desejos em nome da burca moral e
social na qual a enfiavam) o amor “vinha com o tempo” e homem bom era
aquele que não deixava faltar nada em casa ou aos filhos dos quais poderia até
acontecer dos pais mal saberem as idades das pequenas criaturas ou a série que
estariam cursando na escola.
E o gay nessa história toda? Ah, o gay podia ser um
desses maridos de família que casava porque lhe era conveniente para ampliar o
seu armário e ter uma chance de exercitar sua sexualidade sem “encheção”.
Também podia ser um desses filhos de casamentos sólidos e bem construídos ou
desfeitos, que podia “optar” por arranjar uma esposa e frequentar o armário com
mais “liberdade”.
Eu não quero dizer que as regras sociais guardavam as
piores partes para as mulheres, mas digo que as regras da moral e bons costumes
serviam as suas piores partes paras as mulheres que eram tão enclausuradas, sem
espaço e sem direitos quanto os gays. Seria consequências da época em que
Avalon se perdeu nas brumas e a Grande Deusa Mãe, foi deposta num golpe de
estado pelo deus cristão?
Sim, talvez
você com menos de 20 anos não saiba mas diz a lenda (e lenda é um boato que
ficou muito, muito velho sem ter conseguido testemunhas) que muito antigamente,
o mundo tinha outra regência e por isso outra história. Deus não era
macho, a Terra era fêmea e mãe generosa que provia seus
filhos que lhe habitavam com tudo necessário para a sua sobrevivência e
tinha como porta-voz sacerdotisas. Vivia-se num império feminino regido por uma
Deusa-Mãe. Onde foi que a mulherada errou? Imagino que no dia que achou gostoso
levar uma porretada no crânio e ser arrastada pelos cabelos para uma caverna e
lá ficar procriando e aguardando pelo alimento fruto da caçada e pelo do dono
do porrete.
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