3 de out. de 2010

TEMPOS BICUDOS

Quando eu tinha constantemente a companhia de amigos gays, vez por outra alguma menina reclamava da imensa quantidade de homens nas baladas e da  falta de ambientes com um número expressivo de mulheres, eles respondiam que as casas para o público feminino só tinham uma semana de duração porque as lésbicas se casavam no terceiro encontro e não saíam mais de casa. Tudo acabava em gargalha e íamos impávidos e colossais sabe lá deus pra onde, com intenções individuais muito bem definidas. Eram tempos bicudos,  não podemos dizer de chumbo porque a juventude colore, ilumina e aquece tanto as doces bobagens quanto os humores ácidos e consequências amargas. O jovem é dono tempo, é imortal, tem a seu favor o futuro onde ele imagina que terá tempo suficiente para tudo resolver, tornar-se importante, “ser alguém” e ser feliz, assim, como se no futuro fosse possível viver várias vidas de uma única vez. O maior tesouro da juventude está muito bem guardado numa única palavra: a-m-a-n-h-ã.
Se é verdade ou não que as lésbicas  se casam no terceiro encontro, não se pode afirmar, quando eu era apenas imortal, basicamente me casava no primeiro e tenho nisso motivo de orgulho.  Quantas pessoas podem ter a certeza de ter encontrado a pessoa certa logo de cara, na primeira olhada? Quantas pessoas têm peito para se arriscar assim num amor à primeira vista? Ir em direção ao túnel escurésimo só porque avista (ou pensa ter avistado) uma luzinha colorida bem lá no final ou porque ouve sininhos e imagina uma explosão solar do outro lado daquilo que é incerteza e insegurança? Coisas para deusas, benhê!
Qual seria a diferença substancial entre a paixão de um namoro que não deu certo e a paixão de um casamento que não deu certo? Papelada, filharada, família, burocracia e vergonha de encarar os que foram contra e que depois que a vaca foi ao brejo,  disfarçam a satisfação mas não conseguem evitar  o golpe de misericórdia: “eu te disse, eu te avisei”.

Mas eu estou falando de um tempo em que ser gay era descobrir-se amando, interessado ou envolver-se  com pessoas do mesmo sexo e por isso estar automaticamente expulso de casa, abandonado pela família , ser olhado como potencial suspeito por todos os crimes nas redondezas.  Ser lançado num túnel escuro era default para qualquer pessoa que se declarasse gay ou que tivesse trejeitos e atitudes que levantassem tais suspeitas e isso independia do modelo escolhido para o relacionamento. Ddescobrir-se gay era sentir-se a caminho do abismo. Namoro ou casamento implicavam nas mesmas consequências sociais e com relação ao sentimento todos sabemos que o nome atribuído ao relacionamento é o que menos importa. Se você era gay, não era sério, não obtinha respeito.
Assim, nunca compreendi inteiramente as críticas sofridas pelas pessoas que tomando um “pé na bunda” naquela fase inicial de um  romance, que hoje é chamada de “estamos nos conhecendo”,  enchem a cara e cortam os pulsos da mesma forma que aquelas que passam por este processo (de pé na bunda) na fase do namoro ou de “casamento” já consolidado.  Quando a entrega é verdadeira, dói igualzinho, a diferença é prática: para onde levar os cacarecos, objetos e pertences pessoais  e, principalmente,  onde enfiar o corpinho naquelas horas entre o trabalho e a balada. É nessas horas que amo os novelistas que criam um mundo onde uma pequena mala com meia dúzia de roupas pegas aleatoriamente  são suficientes para se viver tanto debaixo da ponte quanto num apart hotel, numa casa de vila ou um apê em Paris. Todas as pessoas sortudas estão nos folhetins com seus amigos que sempre têm para oferecer para o sem-casa, sem-amor ou sem-vergonha uma confortável solução de moradia e emprego.

A vantagem  do gay  de entrar e sair dos relacionamentos pela ausência de vínculos legais  lhes rendeu a fama de promíscuos. O submundo oferecido ao gay para se divertir e se relacionar lhe deram a fama de marginal. A “pegação” gay em vias públicas não me parecia muito diferente da busca heterossexual por prostitutas, mas a “liberalidade” marginal do gay rendeu para os héteros presos na legalidade ou consequência dos seus relacionamentos  um tremenda inveja. Inveja essa que o povo gay jamais percebeu, por encontrar-se invejando a tribo heterossexual pelo  seu direito de atracar-se em público, beijar em público, paquerar em público e porque não, transar em lugares públicos ou pelo menos ter lugares à margem (abençoada peleas vistas grossas de todo mundo) para isso.
Bordéis nunca foram bem vistos pela  sociedade e eram pessimamente vistos pelas esposas que casadas tinham o direito de cuidar da prole, das refeições da família, manter a pose de felizes debaixo de uma saraivada de muitas  outras obrigações,  dentre as quais para a grande maioria delas não estava assegurado o direito de ter orgasmo. Os frequentadores de bordeis para lá se dirigiam na intenção de conseguir diversão e orgasmos mais elaborados diante de parceiras com  atitudes mais “descoladas”, mas também não estava convencionado para as mulheres de lá dos bordéis  que elas  poderiam ou deveriam ter  orgasmo.  O ser humano que vive em sociedade precisa trabalhar, mas não necessariamente sua atividade precisa ser prazerosa. O salário não precisa ser bom,  embora devesse ser, precisa existir e ser o suficiente para liquidar as continhas do fim do mês ou dar margem de negociação para elas.

Mas eu estou falando de tempos bicudos onde atitude era um diferencial para o modo de viver, e essa atitude não precisava ser clara ou declarada, atitude era sinônimo de escolha mas nem sempre de afronta em se assumir-se uma postura. 
Nesse tempo, quando eu ainda era humana,  até as imposições eram frutos de escolhas,  (embora sempre afrontasse) haja vista a expressão “opção sexual”. O termo opção abrangia tudo aquilo que era diferente e por conseguinte desaprovado pela sociedade. Havia a “opção pelo casamento”,  numa época em que a mulher  que não se casasse adquiria um estigma quase como uma tatuagem em lugar visível que gerava repugnância,  receio ou desconfiança.  Se  você que  está lendo isso tem menos de 20 anos vou dar uma breve explicação:
A mulher que não se casava, ficava “pra titia” , talvez porque restava-lhe uma boa participação nos cuidados com os sobrinhos, afinal nunca se desvinculou da mulher o papel de mãe. Ela era obrigatoriamente tia solteirona. Para a mulher que se descasava por atitude própria ou porque não tinha jeito mesmo (pé na bunda na fase casamento) havia o desquite – naquela época não existia divórcio.  

Desquite era a legalização burocrática do descasamento, da separação mediante a qual os desquitados (homem ou mulher ) não podiam casar-se de novo. Um dos problemas do desquite era que muitos homens o evitavam, pois isso poderia incluir pagamento de pensões para os filhos menores e para a mulher, não se assuste por isso, naquele tempo não era comum mulheres trabalhando fora, mulheres ativas no mercado de trabalho tinham para si o mesmo olhar social  que tinham as mulheres que fumavam (cigarros), que bebiam  (social e moderadamente) ou que tinham a sorte de encontrar um ambiente social onde pudessem exercer qualquer ato semelhante à diversão.

Explicado isso, socialmente a mulher separada (com desquite ou não) equivalia às prostitutas. A opção da mulher pelo casamento começava quando desde  meninas tinham como brinquedos infantis bonecas e miniaturas de utensílios domésticos, brinquedos doutrinários muito instrutivos e liberadores da imaginação das crianças de sexo feminino. Despertavam a criatividade da criança para que ela pudesse sonhar em casar, ter filhos, cuidar de uma casa. Realmente o casamento era a grande “opção” da maioria das mulheres. Ok, vou  fazer uma breve observação, muito pessoal é claro, sobre casamento nesses tempos:
Se as mulheres usavam roupas recatadas (calças compridas não eram recomendadas) e não iam à lugar algum, como encontrariam a tampa-da-sua-panela?  
Se a prescrição era casar-se virgem e manter-se esposa pudica, como conseguir uma vida sexual  satisfatória?  
Quando o casamento era de conveniência para mulher isso significava, ter um provedor e escapar do risco de ficar pra titia. 
Quando era de conveniência para a família isso poderia significar agregar o nome familiar a um outro  sobrenome tão respeitável ou acumular mais poder, pouco importando o que pensava a noiva ou como ela se sentia ou o que ela pensava  a respeito do futuro noivo e futura família que se tornaria a sua família (dela) . 
Bem, essa explicação renderia uma outra postagem, portanto vamos resumir que restava às mulheres beijar o sapo com dedos cruzados para que virasse príncipe e ponto.

Tempos bicudos em que se caminhava para o abismo ou túnel escuro sonhando com um dia radioso de primavera lá embaixo (do abismo)  ou lá do outro lado (do túnel). Como nos contos de fadas, o príncipe que nunca se viu mais gordo e quando se via não se pegava,  faria a mulher  feliz assim mesmo, pois naquela época acreditava-se (não me pergunte quem, mas posso deduzir que mulheres mal amadas, frustradas, rindo por fora doloridas por dentro por sacrificar desejos em nome da burca moral e social na qual a enfiavam)  o amor “vinha com o tempo” e homem bom era aquele que não deixava faltar nada em casa ou aos filhos dos quais poderia até acontecer dos pais mal saberem as idades das pequenas criaturas ou a série que estariam cursando na escola.

E o gay nessa história toda? Ah, o gay podia ser um desses maridos de família que casava porque lhe era conveniente para ampliar o seu armário e ter uma chance de exercitar sua sexualidade sem “encheção”. Também podia ser um desses filhos de casamentos sólidos e bem construídos ou desfeitos, que podia “optar” por arranjar uma esposa e frequentar o armário com mais “liberdade”.
Eu não quero dizer que as regras sociais guardavam as piores partes para as mulheres, mas digo que as regras da moral e bons costumes serviam as suas piores partes paras as mulheres que eram tão enclausuradas, sem espaço e sem direitos quanto os  gays. Seria consequências da época em que Avalon se perdeu nas brumas e a Grande Deusa Mãe, foi deposta num golpe de estado pelo deus cristão?

 Sim, talvez você com menos de 20 anos não saiba mas diz a lenda (e lenda é um boato que ficou muito, muito velho sem ter conseguido testemunhas) que muito antigamente, o mundo tinha outra regência e por isso outra história. Deus não era macho,  a Terra era  fêmea e  mãe generosa que provia seus filhos que lhe habitavam  com tudo necessário para a sua sobrevivência e tinha como porta-voz sacerdotisas. Vivia-se num império feminino regido por uma Deusa-Mãe. Onde foi que a mulherada errou? Imagino que no dia que achou gostoso levar uma porretada no crânio e ser arrastada pelos cabelos para uma caverna e lá ficar procriando e aguardando pelo alimento fruto da caçada e pelo do dono do porrete.



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