30 de ago. de 2015

MINHA INFÂNCIA FOI DO BICHO



foto ilustrativa
Na casa de minha mãe cães eram "para tomar conta da casa" e gatos eram para caçar ratos e impedir a proliferação de baratas. Cães ficavam amarrados na "casinha do cachorro", gatos ficavam soltos pelo quintal, podiam frequentar a varanda e nenhum deles tinham o direito de frequentar a casa.
O meu pai (que na verdade era meu avô) mantinha dezenas de passarinhos engaiolados que eram o orgulho dele. Se as aves não cantassem, perdiam a moradia. Se o gato cedesse à tentação de se pendurar na gaiola do pássaro preso, sua permanência ia depender da eficiência na sua função. Raramente, quase nunca os gatos se atreviam a atacar as aves presas e nunca, jamais assisti briga entre cães e gatos, embora as visse entre todos os humanos da casa.
Tinha os dias de "dar banho no cachorro", obrigação dos meus irmãos que depois eu assumi com a maior alegria. Todos os animais eram regiamente alimentados. Ainda não havia acontecido o "boom" das rações industrializadas, de modo que diariamente era feito um angu com bofe, que se esperava esfriar para servir aos cães e sob o grito de "a comida do cachorro está pronta!", lá ia eu a mais feliz das garçonetes!
Os gatos tomavam leite quando pequenos depois tinham uma alimentação que incluía peixes. Logo, tínhamos dias "de comer peixe" para que o gato pudesse comer também.
De vez em quando, alguns dos gatos apareciam miando e gemendo dolorosamente, vítima de veneno que os vizinhos ofereciam. às vezes minha avó conseguia salvá-los com aquelas práticas esquisitas dos antigos suburbanos que vieram da roça. Outras vezes nada restava a não ser providenciar o enterro do bichano, outra tarefa delegada aos meus irmãos e que eu jamais assumi, embora comparecesse a todos os funerais com olhos inchados e a alma infantil moída de dor profunda.
Todos os cães gatos lá da da casa de minha mãe tinham que ser machos. Sim, se por obra do destino surgisse uma fêmea, eles procuravam um dono pra ela e, se não encontrassem ela ia para a "rua da amargura" mesmo. Ninguém tinha dó, era normal para eles esse processo. Eu causava o constrangimento de sempre aparecer com um bicho doente ou ferido. Primeiro levava um esporro, mas o bicho era cuidado até ficar totalmente curado. E sendo um gato, havia o ritual de levá-lo embora empacotado em dias de chuva para que não farejasse o caminho de volta, ritual este, que me era vedado totalmente de participar, por motivos óbvios.
Um dia minha avó ganhou um cão pequines. O bicho tinha uma pelagem diferenciada da raça, ele era extremamente peludo, não era ruivo como a maioria,nem malhado de branco, era assim num tom meio café-com-leite. Era bonito o cretino e como bonito que era ou por ser de raça ou talvez porque na casa de minha mãe quem mandava era a mãe dela - o primeiro contato que tive com uma iminência parda - o tal do pequines ganhou o nome de Riquinho e tinha vida de rei. Podia frequentar a casa inteira, dormia na varanda e comia carne moída, cenoura ralada e arroz. Às vezes cismava de morder uns calcanhares de visitantes e além dos gritos por susto não recebia nenhuma reprimenda porque diziam, "fazia parte da sua natureza esse comportamento".
Enquanto isso, na frente da casa, viviam amarrados os grandes vira-latas responsáveis pelo sossego e segurança familiar. Quase todos cruza de "policial" ou dinamarquês com uma outra raça qualquer que explicasse a imponência do porte e emprestasse dignidade aos seus mantenedores. Cachorro pequeno não era aprovado.
Quando eu estava aborrecida por alguma injustiça à minha infantil pessoa, ia para a casa do cachorro e conversávamos por horas. As lágrimas corriam eles ganiam choramingando baixinho e suavemente.Olhavam-me com seus olhos úmidos e ternos, balançava vagarosamente a cabeça, me entendiam e acalmavam.
Nunca dei muito papo ao Riquinho que eu chamava de cachorro de janela, depois passei a chamar de mauricinho e hoje talvez o chamasse de coxinha. O fato é que eu não entendia ainda como funcionava, mas não via com bons olhos os privilégios que ele recebia apenas por ser um cão diferenciado daqueles que sempre habitaram nosso universo. Chegou sem mais nem aquela e já estava lá ocupando um lugar à janela.
Eu não tinha como verbalizar mas o meu sentimento era que família ficava em desbunde diante daquela pequena realeza animal ou quem sabe da sua origem no que diz respeito aos donos dos seus pais...
oOo
(próximo capítulo: o fim do Riquinho. Liberdade para os passarinhos. Fanta e Big os cães amigos e inesquecíveis)

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