29 de abr. de 2021

SOBREVIVENTES

 


As redes sociais começam a me mostrar lembranças de um tempo que nem acabei de viver ainda. Fotos do início da pandemia. Parece que foi no milênio passado. Parece que a vida que eu tinha antes, de tapa nas costas, beijo na boca, abraço suado, afogamento num mar de gente nas quadras de samba, em volta das rodas nos terreiros, espremida nos espaços indecentes da Lapa nunca existiu.

Quando eu lembro desses momentos parece que foi sonho, imaginação, alguma coisa há tanto tempo que pode não ser verdade. Duvido de mim. Só quem viveu o que eu vivi, poderia se tornar a pessoa que eu sou. Sempre dá pra melhorar. Ninguém melhora sem entregar.

No início dessa vida isolada questionei todos os meus valores e pesquisei todas as minhas capacidades, como quem vai pra fila de emprego, munida do recorte de jornal, da carteira de trabalho, carregando o que sabe fazer vindo de uma experiência não comprovada e que o empregador não quer saber.
Os empregadores brasileiros têm alma de bicheiro: Só vale o que está escrito...

A carteira de trabalho de uma produtora cultural, é a memória do público que assistiu suas produções. É o rastro de construção dos espaços por onde passou. É o carinho dos artistas que conseguem continuar com carinho depois de trabalhar junto, uma atividade mais íntima do que casamento, de maneira que, o falar mal de alguém diz muito mais sobre quem fala mas o falar bem, já é outras coisas. Produção é preenchida por valores ancestrais, quanto mais horizontais, mais próxima da perfeição.

Foi numa outra vida que eu trocava com Dona Ivone Lara, vivia no cafofo da Tia Surica, fotografava com Marquinhos de Oswaldo Cruz, entrevistava Marquinho Sathan, Papeava com Neide Sant'anna, me encantava com Aluisio Machado, bebia na fonte Monarco, paralisava diante de Cristina Buarque - por mais que ela tenha achado a cabine para se transformar em Maria Christina Ferreira e o escaninho para tentar arquivar seu traje encantado-encantador. Não querida, mestres não se aposentam, e você é mestra. Aceita pra não doer nada.

Foi nessa outra vida que eu enchia a cara na porta do Portelão, sem ter um puto de um tostão e ria como se fosse milionária porque bêbada ri à toa, abraça por nada e beija todo mundo. E eu sou uma bêbada fácil, de baixo investimento, baixo custo, baixa renda mas de muita inspiração etílica. Qualquer 6 latinhas jogam minha pose pra baixo da mesa e empurram a minha criatividade pro patamar do céu é o limite.

Eu vivi um mundo de ícones de carne e osso, construtores de uma cultura que tentam jogar no bueiro. Parece sonho, às vezes pesadelo.

Entendo as pessoas que não conseguiram passar pelo processo de isolamento. Parece que a gente vai envelhecer sem nunca mais fazer coisa alguma. Sensação de cadeia.

Acho que as fotos de hoje são mais velhas que as do ano passado. Parece que todo mundo engordou. Até os jovens estão mais velhos. Somos testemunhas de um crime que não assistimos mas por tabela praticamos, agora temos que esconder o corpo, o nosso. Vítimas e réus concomitantemente (eu sempre soube que um dia poderia usar essa palavra ridícula mas sensacional num texto!).  Se quisermos em algum momento, continuar respirando em plenitude. Vivos. Velhos. 
Vivos. Gordos. Vivos. 
Sobreviventes. Vivos

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