11 de nov. de 2014

Povo da Rua

Existe uma coisa que me comove,me fere,me dói tanto ou mais que doença em crianças. É morador de rua. Quando eu era menina em Jacarepaguá, não havia tantos e, ainda acho que tem poucos quando revisito o meu mais recente antigo endereço na Lapa.... 
Os que tinham eram personagens quase folclóricos do bairro por exemplo, na Freguesia, bairro que fui criada, tinha a Perereca, uma senhora de nome Maria que quando a gurizada chamava de "Perereca" ela xingava horrores e corria atrás deles, não de mim - porque se eu fizesse isso, não teria sobrevivido à furia de minha mãe para contar isso aqui. Lembro vagamente, pois eu era muito criança, que comentavam ela havia enlouquecido de amor.

Tinha também, lá no Remy, perto da Colônia Juliano Moreira, o seu Waldyr, ele tinha sido pintor e segundo dizem dos melhores. Sua ex-casa era ali bem pertinho, mas ele não voltou pra lá, passou a morar na rua, depois de encontrar sua esposa na cama com outro.
Seu Waldyr era tipo maluco beleza, gente boa pra caramba. Habitava a esquina da Outeiro Santo com Rodrigues Caldas, circulava por toda área ali, até o "Sem Porta" um bar que ficava onde a Rodrigues começa e depois virou Igreja Universal. todos, menos os da Igreja, lhe davam comida, estava sempre atrás de um dinheiro pra cachacinha, "só 2 dedinhos de Da Roça"... 
Criava a terceira, quarta e quinta pele com os cascões negros da poeira das ruas e quando ficava demais, o Pedrinho carregava ele pra Colônia e lhe aplicava um bom banho, corte de cabelo, fazia-lhe a barba e, ele começava tudo de novo - sua coleção de cascões, cachaça e tristeza, embora fosse um cara alegre e prestativo.
No entorno do Largo do Anil, tinha o Zé Grande. Contavam que ele tinha sido policial e se abrigou nas ruas fugindo também de uma decepção amorosa. Essas personagens habitaram minha vida ao longo de um período de mais de 30 anos. Foram locais onde morei e tive esses vizinhos.

Eu ficava estarrecida e sem entender a escolha por esses caminhos. Morria de ternura por essas pessoas, ajudava no que eles precisavam e nunca consegui impor que eles devessem mudar, voltar, retomar suas vidas. Percebia que não havia retorno mas, deveria haver uma vida nova para cada um deles e, onde se compra uma vida nova?
Eu nunca tive medo de morador de rua. Sempre me choquei com os 'bulyings' que eles sofriam. Assim como fiz boas amizades entre prostitutas quando fui fazer um trabalho para a faculdade - Aliás, sobre isso, tenho que dizer que tinha a maior curiosidade de entrar naquelas boates lá da Praça Mauá, o que fiz na primeira oportunidade que tive e nunca fui tão bem tratada na vida e nunca ouvi histórias tão comoventes e engraçadas porque a tragédia quando é grande, só rindo pra temperar a amargura.A sociedade é assim, do que não aceitam e não entendem, falam tudo menos a verdade. Mas esse não é o ponto agora.
No entanto, sempre tive medo dessa situação, do risco de ter de morar na rua. Medo de enlouquecer, perder o eixo e não achar ânimo para os eternos recomeços que a vida sempre nos exige. Medo de ter medo das pessoas a ponto de me tornar invisível e, que maior invisibilidade que a pobreza?
Sim, perdia tempos pensando como as pessoas chegavam a esta condição. Imaginava um pai de família que perde o emprego, não consegue recolocação, o aluguel atrasa, a comida acaba, a mulher vai embora com os filhos, o proprietário retoma o imóvel, o nome vai para o SPC/Serasa, os empregadores descobrem negando, por isso a ele, mais uma oportunidade. As roupas se desgastam, a miséria se aboleta, a depressão entra em cena, os amigos fingem que não percebem, o cara pede um emprego pra eles e eles respondem blasé: "Sabendo de alguma coisa te falo", "você é guerreiro(a)", "Deus está no controle" e evasivas parecidas. A princípio comentam o infortúnio e depois o evitam, o esquece. Por sua vez, o agora coitado não tem cara de botar a cara e "quem não é visto, não é lembrado".
Paralelamente às minhas elucubrações, corria a realidade de pessoas que saem de casa para não sofrerem violência, espancamento, abusos. Que muitas delas até um certo momento, encontrando uma oportunidade, sairiam desse umbral social. Nenhum deus ou diabo sabe tanto dos requintes de crueldade quanto o ser humano que os conhece e é capaz de praticá-los.
Eu imaginava também que a pessoa para viver a situação de rua tinha que ter uma pré-disposição. Mas nada afastava de mim o terror de um dia parar lá. Não sobreviveria muito tempo. Não sou de grandes apegos, mas sem pelo menos um lápis, papel, música e principalmente muita conversa eu não conseguiria sobreviver.
Nunca enxotei uma pessoa dessas quando, bebericando pelas calçadas elas entravam na roda para pedir, atitude que várias vezes me livrou de assalto ali pela área da Central. Pelo menos por duas vezes consegui explicar pro moleque cracudo, que tava na merda tanto quanto ele, geralmente vindo de um trabalho onde o pagamento não rolou, ficou pra depois e, por isso estava ali, naquele sufoco, com o estômago gritando, carregando maior peso, sem grana pro táxi, perdida na sequencia dos BRS que eu ainda não havia conseguido decorar...

Ainda que tenha percebido que não são mais os tempos românticos de Dona Maria e seu Waldyr (ler a parte 1). Os mendigos românticos, enlouquecidos por amor, evadidos de suas casas pela dor, ganharam a volumosa companhia dos deserdados de alguma sorte, dos nascidos ou crescidos (des)cuidados pela própria rua. Passaram a usar o crack em vez da cachaça como paliativo e se reúnem com aqueles em que a droga não é o consolo (consequencia, fuga) mas o motivo, a razão de eles estarem lá.
Ainda assim, me dói na alma ver um ser humano como eu, viver desse jeito, principalmente por saber que ali passarão a pertencer a um outro reino muito menos valorizado que o animal, vegetal ou mineral. Passam a ser invisíveis e quando vistos são desprezados como se fossem zumbis, assombração ou qualquer coisa que se tema muito ou provoque muito nojo e que é melhor mesmo não ser notado.
A humanidade é assim, quem não é igual perde o valor. E talvez seja esse o meu real temor.

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