4 de mai. de 2016

O DIA QUE EU DESCOBRI QUE DEUS EXISTIA

Foi em 1981. 
Menti pra minha mãe e fui com amigos pro Rio Centro. Eu nunca fui de mentir, só quando o assunto era música. Minha mãe já era "coroa" quando me adotou e vinha do tempo em que mulheres artistas, socialmente, equivaliam às prostitutas e por isso nunca admitiu que eu cantasse ou convivesse "nesse meio de artistas". 
A minha família não era rica para ter essas frescuras, nem a gente passava fome para que eu tivesse um grande pretexto para peitar as ordens de mãe. Apenas era um tempo em que "cabaço" ainda se preservava e não se leiloava on line (mais novinhos pesquisem no Google a palavra cabaço, por favor). A família cuidava dele (do cabaço) como um bem coletivo, herança dos tempos mais antigos dos casamentos arranjados, onde todos lucravam, menos a mulher, que pagava com a sua infelicidade, a alegria de ter uma família honrada, uma família pra cuidar e ou lhe atormentar, um homem para lhe maltratar ou no máximo, lhe ser indiferente e, nenhum orgasmo, já que nesse tempo, mulher de casa não podia se remexer na cama tinha que ser bela-recatada-e-do-lar, captaram?
Então, em 1981, no dia 30 de abril, eu menti pra minha mãe e fui assistir ao maior show musical de todos os tempos!
Era só gentinha tipo Chico Buarque, Gal Costa, Milton Nascimento, Beth Carvalho, Dona Ivone Lara, Paulinho da Viola, MPB4, Simone, Joanna, Zizi Possi e... Ah, já está bom pra vocês entenderem que valia a pena até vender a mãe pra ir lá, quanto mais mentir...
O Rio Centro já era grande, já era longe de tudo e os fãs desses artistas já eram muitos (perceberam a lotação do evento?) eles já tinham um histórico de luta pela liberdade de expressão, ou no mínimo, de resistência para que não retrocedêssemos direto, pelo túnel do tempo pelas vias do cassetete e pau-de-arara, para a Idade Média ou Inquisição .

Lá estava a grande maioria da nata, dos maiores nomes da nossa música. De Chico Buarque a Ivone Lara, de Roberto Ribeiro e Paulinho da Viola a Elba Ramalho e Ivan Lins, passando por Simone, Beth Carvalho, Clara Nunes, Gal e Angela Ro Rô. Um público de 20 mil pessoas. Olhe o tamanho da covardia e pense se essa tramóia tivesse dado certo.  
Foi assim que eu descobri que deus existe, que é de esquerda e protege a juventude. Gosta de MPB e é fã do Chico (chupem, coxinhas!). Pois a bomba que os militares (da direita) iam explodir no show pra dizer que era um atentado terrorista dos comunistas de esquerda (milicos são redundantes), a mão de deus botou pra explodir em cima deles, por carinho ou justiça divina, uma vez que já nesse tempo não me lembro de ver comunista por aqui.
Apesar do desastre da operação 1 milico morto e 1 ferido no local, o protocolo de fazer o mal, junto ou separado, continua até os dias de hoje. A mídia, outrora investigativa, assumiu seu lugar no circo, os juízes que certamente não fizeram teste vocacional se ressentem inconscientemente e buscam holofotes para si e vão vazando delações sem provas para uns, fazendo-se de besta para outros. Com a internet ainda com alguma velocidade (creiam que isso vai acabar porque pobre não pode ficar conectado 24h, onde já se viu?) a verdade é que quem não tem latinha vazia pra vender, quer mesmo é aparecer.

Alguns dizem que nunca houve ditadura nem tortura. Que morreu, apanhou e desapareceu, quem mereceu. Mais ou menos o que os escravocratas diziam sobre o negro que não por acaso, quase sempre é pobre também. Tudo segue mais ou menos na mesma. Querem de volta o cabo do chicote, querem operacionalizar o detonador da bomba. Para isso escondem-se os roubos de uns, potencializa-se as falhas de outros e brasa nas sardinhas, pra que te quero?
Mas é importante dizer que voltando daquela noite, eu não sabia de nada. Nem da bomba nem do susto. O Gonzaguinha até falou mas o Rio Centro era grande, o show estava fantástico e ainda não tinha rede social. Imaginem como a gente sofria: Tantos artistas dos bons e nem tinha como fazer uma selfie... :(
Mas minha mãe - bela, recatada e do lar, já sabia e tinha uma bomba pra explodir lá em casa, bem em cima do meu lombo jovem, moreno, bem tratado e cabaço ainda conservado. É que lá em casa na hora da barata voa, não tinha "meu pé me dói".
* * *
Quem quiser saber mais:
Vídeos da época com depoimento de Gonzagão e Chico Buarque, noticiário e poucos registros do show

Comissão Nacional da Verdade
Info Escola
Wikipedia
Jornal de Todos os Brasil
Jornal Zero Hora

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