22 de out. de 2016

FOI DAR NO SAMBA

O chato de ser jovem é que a juventude passa e a gente fica sendo apenas o "mais novo que" e ainda assim, não recupera o que perdemos se somos do tipo que sente que já nasceu atrasado longe de tudo aquilo que queria ter vivido. Ah, eu sempre a filha do meio...

Em termos de samba, o Rio de Janeiro é ainda e por enquanto uma cidade generosa conosco esses nascidos com atraso cultural, apesar de alguns a chamarem de "cidade partida", suas divisões não são formadas por abismos e o que nos divide não são os bairros e seus limites geográficos dessa  cidade que simplesmente nos une com o samba, tradição oral, às vezes  cantada e muito, muito falada. 

Ainda é fácil pegar um trem e não há muita dificuldade de se tomar uma barca. Os abismos não existem, são limites que estão na nossa cabeça ou na maioria das vezes na cabeça alheia e não há muito o que fazer se presos a  eles rodamos tonta e tolamente ouvindo apenas o que permitem que chegue até nós. Se as rádios e TVs permitissem, a busca pela fonte mataria a sede que a gente só sabe que tem quando encontra essa água.

Nasci relativamente perto de Madureira, estudei inclusive numa escola desse bairro, mas só cheguei de verdade por lá quando fui morar no Bairro de Fátima e acredito que isso só aconteceu porque Jacarepaguá fica longe do trem e a gente ficava besta andando de ônibus e de carro na ilusão que subúrbio é diferente de Zona Rural  só porque não tem trilhos. Do Bairro de Fátima para a  Central do Brasil  eu ia a pé e lá os trens passam livres dos recortes geográficos que dividem nossa cidade em bairros O trem só anda nos seus trilhos, mas o seu som vai longe e carrega muita gente.

Sempre mais nova do que alguém que foi dar no samba (no sentido de chegar ao samba) muito antes que eu, perdi a melhor parte, aquela que o samba era dos sambistas, de uns sambistas que faziam sambas e viviam no seu congraçamento. Hoje a gente vai num samba que é evento, roda, show. Não é crônica nem história, é trabalho para quem faz e lazer para quem vai. Viver nele é mais difícil. Quase não tem mais.

Eu passava horas imaginando Monarco conversando com Ratinho, batendo papo com Cartola, novinho ainda com Silas de Oliveira, desejando saber como era encontrar com Lonato, Jair e Manacéa por exemplo. Um tempo que os sambistas interagiam, conviviam compunham sem o auxílio luxuoso do telefone, e-mail ou vídeo-conferência. Encontravam-se! Encontravam-se e  às vezes trabalhavam juntos em funções humildes, faziam farra, comidarada e viravam compadres. Compunham a partir das suas vivências sem a pressão ou  a correria dos concursos e festivais. Sem pensar nos programas de TV ou o que seria mais interessante para os produtores e gravadoras. Eles tinham suas escolas e nenhuma pretensão de virar pop star. O samba, uma expressão de suas vidas, uma manifestação do seu modo de viver. Samba que contava sua própria história, alguns amores, um monte de dores, que ensinava a cozinhar, reclamava das contas a pagar, dizia como era pagodear e não tinha nhém-nhém-nhém, no máximo uma lai-á-lai-á. Sem levanta-a-mãozinha, sem dança-de-bundinha, sem calça apertadinha.


A primeira vez que estive lá pelos lados de Madureira, quando não era mais a orgulhosa normalista que ouvia música de fossa, MPB e ronquenrou, eu me dei um tapa na testa pensando: Caramba, por que não estive aqui antes? Mesmo tendo cansado de estar por lá. É porque Madureira tem muitos lados. O lado de lá e de cá do viaduto, o lado de lá e de cá da linha do trem. Porque de onde eu vim, não tinha trem que me deixasse por ali passarela do Império Serrano ou pertinho da Portelinha e Portelão. Porque a batucada que tocava no rádio não explicava de onde vinha, deixando-me próximo da idéia dos artistas que faziam shows e não dos sambistas que eram o próprio show. 

O pouco que eu sei de samba - e é pouco porque conheço tanta gente que sabe muito mais -  aprendi com os mais velhos, aprendi um tantinho ouvindo histórias, essas que me fazem ficar imaginando o passado que não pude ter, reconstituindo na imaginação a vida dos sambistas que não sonhavam em ficar famosos, podres de ricos e botar a cara na TV. 

Lá do meu cantinho, recolhida à minha insignificância, eu vi alguns pagodes, o couro comendo com gente que eu só via nas revistas e nas capas dos LPs e foi assim que entendi o significado de algumas palavras, como por exemplo, baluarte, manancial e expressões do tipo "beber na fonte". Eu vi Clara e Beth descontraídas, mas dar de cara com um Monarco, um Aluísio Machado, Wilson das Neves, Tia Surica  era sempre um susto agradável, sabe, daqueles que o coração meio que pára, meio que estala e a gente não respira direito e a língua não tem palavra.  Ver o quanto eles eram diferentes dos stars do samba que as rádios tocavam, ídolos que eram,  viviam como se famosos não fossem e aí eu descobri que fama e sucesso são coisas tão diferentes bem sempre estão juntas de modo que formem uma moeda inteira com seus dois lados. 

Assim, até hoje chegar por lá, em Madureira - agora que sei o caminho, pulo os "abismos", não dependo mais do trem - encontrar os que ainda por lá estão, me dá a sensação de que hoje, mesmo ainda sendo sempre "mais nova que" alguém, terei história de mais velhos pra contar que farão alguns novinhos ficarem com a mesma boca aberta que eu fiquei um dia e pra falar a verdade, fico até hoje, porque o samba não pára, as histórias nunca são contadas de uma vez só e ainda existem as versões de cada uma.

 Mas o que eu queria de verdade, era ter conhecido as quadras no tempo do terreiro, na época do pega pra capar, conforme me contou Cristina Buarque certa vez quando deixei o trem de lado, peguei a barca e fui dar com a minha cara redonda e espantada lá em Paquetá. Dar num samba no sentido de ter chegado lá. 

Cristina era uma figura que estava presa na minha imaginação desde os anos 70, com suas raras imagens na TV preto e branca lá de casa,com aquela voz docinha, cantando lágrimas salgadas. Às vezes eu prestava atenção e o rádio informava: "Quantas lágrimas, de Manacéa" e por aqueles motivos que quem foi criança entende eu achava que Manacéa era mulher. Se tivesse um programa que explicasse quem era Manacéa, talvez eu tivesse chegado mais cedo no samba, seria a mais nova do grupo, mas histórias continuariam com a mesma data, teriam sido vividas ou vistas em vez de ouvidas na voz dos mais velhos que eu - Ah, esse povo mais velho que assistiu essas histórias! Perturbam como imãos mais velhos...  Descobri quem foi Manacéa quando conheci Áurea e Dona Neném e isso parece que foi ontem, mas não foi, no entanto foi em Paquetá, numa dessas vezes que tomei a uma outra barca e fui dar num samba por aquelas bandas, Dar no samba, no sentido de chegar.

Tia Surica chegou na minha vida como um grande amor, se Dona Ivone me pintou  de verde e branco,  Eliane Faria, filha de Paulo César Faria,  abriu-me as portas do samba e foi Tia Surica quem me fez sambar na sala, Deu-me me morada naquela novidade e
descortinou um canto azul no meu coração. De produtora de shows, preferi ficar fã. "Eu não tinha nome e queria apelido", eu não podia "chegar de algema que o preso era maneta", Eu fazia "cara de pastel sem carne".  No seu "Cafofo" eu já crescida, nasci.

Conheci a voz de Monarco num LP  que veio de um sebo dentro da capa de um Martinho da Vila, cheio de um tuc-tuc  arranhado, o que não impedia aquela  voz grave,  forte e macia como um tecido de veludo de me deixar impressionada, apatetada sem saber de onde vinha, quem era, e por que não parecia no Programa do Chacrinha ou no Flávio Cavalcanti que tinha sempre o Sargentelli por lá? No dia que tive a bênção de unir a voz à pessoa quase tive um troço e fui assim,quase tendo um troço, até Araruama num carro de luxo que ainda não era Uber, ouvindo dezenas de histórias que eram nossas, do Rio de Janeiro, do Brasil e  nunca me contaram na escola... Por quê a gente não tem aula de história da nossa cultura na escola? Por que não nos apresentam esses grandes vultos vivos de um passado que ainda não passou ma sé a espinha dorsal das nossas vidas? Pensava eu.  Mas essa história eu conto outro dia. Hoje estou encaixotada na vida que não vivi porque era jovem demais, morava nem tão longe, mas  distante do trem que me fez dar no samba. Dar no sentido de chegar


Na foto da direita para esquerda com: Monarco, Tia Surica (na casa de Dona Nenem), Tia Eunice e Cabelinho, Dona Dodô, Ivan Milanez e Cristina Buarque, Dona Nenem (viúva de Manacéa), Dona Ivone Lara, Wilson Moreira, Zé Luiz do Imperio, Mestre Trambique, Casquinha da Portela, Nelson Sargento

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