4 de fev. de 2021

O LIVRO E A VÓ

 


Quando eu era guria e pegava num livro, só o largava quando terminava de ler. No reino dos livros não existia louça pra lavar, dever escolar pra fazer, sem culpa no mundo da literatura e tudo era muito bom.

Minha avó enlouquecia, reclama, se queixava para minha mãe (filha dela), achava absurdo. Minha avó não sabia ler nem escrever e era imensamente controladora e eu tive que viver muito pra começar a tentar entender o que ela sentia, pois era um conteúdo, uma experiência que ela não podia analisar, julgar para controlar, ao mesmo tempo, como entender o que tantos signos ininteligíveis, para ela, poderiam entreter uma criança por tanto tempo, ao ponto de ela preferir "aquilo" - o livro, do que a TV ou brincar na rua?

Era preciso que ela descobrisse o que havia ali, boa coisa não haveria de ser e como isso não lhe era possível, a sua estratégia passava a ser me impedir de ler, eliminando o meu prazer.

Nessa idade eu não tinha obrigações domésticas e era proibida de brincar na rua, lá em casa não tinha outras crianças. Um cachorro amarrado na casinha, uns gatos que mais desapareciam do que eram vistos, um abacateiro esguio, umas goiabeiras que limitava sua generosidade ao seus frutos e apenas isso. Não havia nenhum pé de laranja lima com galho onde eu pudesse sentar como se fosse sela de um cavalinho. Ainda bem. Certamente eu teria ido parar no hospício se me desse a esse desfrute.

Três coisas advindas dessa época me ocorrem:

O quanto eu entendia as pessoas que passavam horas na internet lendo coisas esquisitas;

Meus sobrinhos que não eram muito chegados aos livros mas amavam uma TV e eu não os incomodava;

e o quanto as pessoas inseguras, infelizes, seja por falta de oportunidade de vida melhor ou porque são ruins mesmo, podem tentar tirar de nós coisas simples que nos façam felizes.

O meu tio, filho da minha avó, vivia agarrado com pequenas brochuras de bolso, quase sempre histórias de far west, as quais ele me emprestava. Meu tio era um preto bonito, com voz linda que tinha 13 filhos e muito pouca paciência com criança. Gastava toda a sua paciência jogando cartas com os meus irmãos nos finais de semana. E como lá em casa não tivesse muita gente pra conversar era com ele que eu puxava assunto no seu horário de almoço, servido pela minha avó com farinha e pimenta, água, suco ou refresco e depois ele ia pra cama tirar uma soneca, precedida pela leitura do livro que acabava lhe cobrindo os olhos e vedando a luz para que tudo ficasse perfeito. Claro que ele preferia me emprestar um livro que me mantivesse calada! Foi assim que eu li o Homem Que Calculava, de Malba Tahan, O Egípcio e muitos livros enormes com mais de 300 páginas e nenhuma "figura". Foi assim que minha avó passou a enlouquecer de ciúmes dessa ligação e foi assim que eu entendi que se alguns tentam nos tirar o prazer que não conseguem compreender, há os que vão nos dar qualquer prazer para que possam se deleitar em paz.

E eu que cresci achando que tive uma infância estéril e sem graça.

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