11 de jan. de 2021

APENAS AMOR

 


Meu primeiro sobrinho nasceu em 1970, quando eu tinha 6 anos, a irmã dele em 1975 e o último rebento dessa ramificação da família foi mais um garotão nascido em 1979 quando eu já tinha idade para batizá-lo. Nós tínhamos idade para sermos irmãos. Durante um bom tempo conviveram comigo, com minha avó e minha mãe. O plano era deixar de pagar aluguel até que conseguissem o suficiente para uma casa própria. Lá em casa era um matriarcado, minha mãe elaborou e executou cada etapa desse planejamento. Foram construídos dois grandes cômodos no quintal lá de casa, colados numa grande varanda, com piso chamado "vermelhão" que quando eu ia lavar transformava numa piscina de sabão em pó para que eu e os sobrinhos pudéssemos deslizar, nos empurrar, brincando de super-herói, tapete voador e qualquer coisa que voasse.

Quando eu tinha uns treze ou quatorze anos, dei o meu primeiro beijo. Foi dentro do carro do meu cunhado, no irmão dele, no banco da frente, com os sobrinhos fazendo uma tremenda algazarra no banco de trás, porque éramos um tanto inseparáveis, embora eu já me sentisse mais velha e os achasse uns pirralhos amados, porém inconvenientes. De repente eles silenciaram, um deles queria vir para a frente e o mais velho disse: "Eles estão se amando".  Ri, no entanto, achei mais bonito do que engraçado.

Anos depois o portão lá de casa era uma efervescência feminina. Me descobri sapatão, estudava num colégio onde a imensa maioria era de garotas e era muita menina frequentando lá em casa para estudar, para fugir dos pais, para os mais variados motivos. Alguns vizinhos olhavam estranho como se suspeitassem que esse movimento continha umas tintas lésbicas, mas eu tinha quase certeza que estranhavam a bagunça mesmo, pois minha mãe não permitia visitas quando não estava em casa. Uma dessas garotas virou minha namorada e não saía mais lá de casa e a gente fazia de tudo para enrolar as crianças e ter alguns momentos a sós, o que só conseguíamos no portão, na rua, mas logo as crianças vinham e o namoro virava uma algazarra.

Minha namorada vestia roupas masculinas, parecia mesmo um "garoto", minha mãe a odiava só por isso, e eu começava a virar um garoto também e foram os sobrinhos os primeiros a perceberem essa mudança. Foram eles que perceberam, primeiro, antes de mim, que aquela garota gostava de mim e um dia um deles me "enquadra:"
- Porque você não beija a tia Eithel?
-  Por que você está perguntando isso?
-  Porque ela gosta de você.

– Ah, meu querido, vem cá. Coloco ele bem pertinho e digo: Não é assim essa coisa de uma gosta e outra beija. Beijar é uma coisa muito especial, conecta os corações
- Conecta?

É. Conecta é quando uma coisa toca na outra e cria energia. Essa energia tem que ser boa. É como uma tomada, uma lâmpada. Conectar é um toque que gera alguma coisa boa para os dois lados porque os dois lados precisam ter a mesma frequência.
- Frequência?

- Frequência é como um ritmo.

Levantei, peguei-o e o sacudi fazendo-o dançar comigo.  Não podemos dançar juntos, eu dançando rock e você dançando o bolero da vovó. 

- Entendi. Você tem que gostar dela igual ela gosta de você pra poder beijar direito e ficarem felizes.

- Isso!

 Eu me sentia duas vezes surpreendida. Uma: pela novidade que ele me trazia que eu não havia percebido. Duas: a naturalidade com que abordava   aquela provável relação. Ele nunca me questionou ou teve qualquer estranhamento por sermos duas mulheres. Ainda não o haviam contaminado com o preconceito. Com todas aquelas bobagens ruins que nos afastam do amor. Para as crianças, amor é amor. E amor é uma coisa boa. Sempre. Não deveríamos nunca tirarmos isso delas com os nossos conceitos tortos e amargos.

Meu afilhado e minha sobrinha nunca perguntaram sobre o meu relacionamento, assim como o mais velho, para eles era normal o afeto, ainda que eu evitasse cenas românticas na presença deles e eles não entendiam por que. Viam beijos nas novelas, viam beijos dos pais, viam beijos nas ruas, nas praças.

Eu sabia que não era por eles, mas por todos os que preferem a criança exposta  às violências, desde o desenho animado até o noticiário com balas perdidas de militares achando corpos inocentes infantis, passando pelas guerras e brigas da ficção e da realidade. Preferem crianças famintas, expostas a tudo, nas ruas, marquises e sinais de trânsito do que adotadas, bem tratadas, amadas, queridas por pais gays.

Meus sobrinhos temiam brigas e gritos, isso para eles não era normal. Além da minha ausência de beijos, as ofensas e discussões era o que eles não entendiam. Uma mulher parecendo namorar outra mulher, para eles era apenas amor.

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