26 de ago. de 2021

QUE A TERRA LHE SEJA LEVE

 


Há muitos anos tive um chefe que era o dono da empresa, eu tinha 23 anos e ele, uns 42. Certa vez ele me deu uma cantada em grande estilo. Foi mais ou menos assim:

Voltei de férias, linda, pele preta-canela super em dia, viajada, cheia de roupa nova, cabelo com o corte da Simone que era a moda e tudo da Cigarra que eu podia ter...
Ele tinha o hábito de tomar champanhe à beira da piscina todos os dias às 18:15 horas e sempre me convidava. Eu ficava por ali, que ele tinha conversa ótima. Era um cara de outro estado, tinha muitas histórias diferentes. Amo histórias.
Nunca percebi que eu era sua companhia preferida pra isso, o horário ficou sendo esse porque o escritório fechava às 18 e quando ele me convidou pela primeira vez, tipo por acaso, eu recusei porque não bebia em hora canônica. Até hoje, não.
Ele me chamava RosEmarL, naquele sotaque do sul e brincávamos muito por conta dos nossos sotaques. Ele me corrigia:
- Não é um copo di leiti quenti! E: um copo dE LeitE QueNNtE
Eu respondia:
- Não é Rosemarl é Rozzimarrrr, Nem carlne, nem porlta
A gente ria.
Eram tempos de Figueiredo, gatilho salarial, Tancredo agonizante e ele falava mal do velhinho. Eu não era mais politizada, larguei a política junto com a faculdade, já tinha abandonado as reuniões do movimento negro mas não dava, como nunca deu pra deixar de ser de esquerda e era franco atiradora independente da causa, na época, chamada LGS.
Ele sabia da minha condição homo afetiva, aliás o mundo sabia. Eu adorava ver o espanto na cara das pessoas que me julgavam bonita demais, culta demais, inteligente demais e pasme - sexy demais para ser apenas sapatão. Sim, porque eu só conseguia emprego quando me munia de decote, saia, salto e muito charme no andar que ralei pra aprender a ter nas aula da Socila.
Nesse dia de volta das férias, no final do expediente ele me convidou pro champanhe costumeiro. - Vamos tomar um Chandon pra comemorar sua volta?
Eu gostava dele e tinha um pouco de dó. Era um cara solitário. Tratando do divórcio recente, a ex linda com jeito de miss, um filho pré-adolescente que era o capeta em forma de piá e uma filha louruda boazuda que sissi demais.
Quando a garrafa chegou abaixo da metade, ele vai ao escritório e volta com uns papéis. Conta que também viajou. Fora à Mauá, comprou um sítio lindo que tinha uma queda d'água e uma pequena piscina natural. Fiquei feliz por ele.
- É pra passar finais de semana?
- Pode ser. Se você me convidar.
- ??
- Eu queria te dizer, que RosEmarl que eu senti saudade de você.
- Ah, eu também. A gente passa mais tempo junto que...
- Não. Eu sinto saudade de você como mulher. Da sua companhia. Da sua conversa, mais da sua alegria. Você é tão menina, angelical com o diabo no corpo.
- Adorei o elogio. Sou bem isso mesmo mas não entendi o sítio.
- Comprei esse sítio pra você. Você ama cachoeira e mato. Diz que gostaria de viver no interior. O meu divórcio está concluído... É um presente de noivado.
Fiquei feliz, aquela felicidade triste de quando a gente não sabe o que dizer e lamenta por não poder atender. Não era uma uma tristeza alegre. Era um desconforto receoso. Mas dei conta. Com jeitinho.
Saí da empresa quando minha mãe faleceu e eu enlouqueci. Não conseguia trabalhar, nem comer, nem dormir de certa forma morri junto por ter de enterrar meus sonhos de filha que eu ainda não tinha conseguido ser direito.
Nos reencontramos depois, creio que só mais umas duas vezes. Minha marida na época era macha abusiva, me cerceava e eu, uma bobona que não percebia. Vivia à minha custa e tinha pavor de eu me encontrar com ele.
A essa altura, ele engrenou um relacionamento com a filha de um funcionário que vivia indo lá cercando, cercando e me odiando. Burlei as vigilâncias quando soube que o filho, já crescido, tinha sofrido um acidente grave. Ele me recebeu com a alegria de sempre, apesar de estar ainda mais triste e carregando uma solidão que dava pra pegar com a mão.
A noiva, me tratou com desprezo. Fodasse. Não fui visitá-la. Na visita seguinte, eles já estavam casados ou morando juntos numa casa bem bacana num sub bairro bem metido a chique aqui perto mesmo. A mona me espinafrou. Eu reagi com elegância pra ela ficar irritada e com a veemência de quem não abre mão de bons amigos. No entanto, nunca mais voltei. Não acho digno mexer com a insegurança de outra mulher por mais que ela mereça e ele embora tenha vindo falar comigo, do lado de fora, na praça, não me pareceu merecedor de insistência por essa amizade. Também não fui por gosto, mas aí já é outra história.
Isso tem quase uns trinta anos.
De terça pra quarta dormi um pouquinho pela manhã depois de concluir uns vídeos e gravações de áudio pro projeto que tem dado sentido aos meus dias pandêmicos. Foram cerca de duas horas de sono. Sonhei com ele. Um sonho muito estranho. Durante o dia esse sonho me perturbou. Queria entender o significado. Não conseguia.
Na época eu ouvia muito Belchior, aquele LP com a foto imensa em preto e branco tinha uma música que me lembrava muito ele. "Pequeno perfil de um cidadão comum." Até hoje lembro dele quando ouço. Lembrei muitas coisas. Não catei o significado do sonho.
Entre tantos afazeres, consegui um tempo pra sentar, fumar um cigarro e tomar uma cerveja, porque Chandon, sem chance. Catei Belchior no Spotfy. Fiz as contas, ele teria hoje uns sessenta e oito, sessenta e nove anos. Tentei imaginar como estariam seus olhos cor de oliva, se ainda usaria cabelos cacheados em volta daquele rosto imenso e se ainda teria aquele sotaque carregado. É estranho lembrar de tantos detalhes de quem saiu do nosso radar. Apreensiva se ele não teria virado um véio da havan.
Dei um google no nome dele.
Descobri que fazia sete anos que ele não morava mais nesse mundo. Morte acontece quando a gente sabe.
Minha roça está fechada ainda. Vou encomendar uma missa para aquele ateu gentil. Aquele gigante triste de riso espalhafatoso. Aquele homem, o único que pensou em me dar algo em vez de tirar.
E como dizia Belchior no final da música que é do Toquinho:
"Que a terra lhe seja leve"

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