12 de out. de 2018

Tia Surica leva todos nós na sua voz

Nesse momento tosco, cinzento e praticamente infeliz, só ela pra fazer nossa alma sorrir. Foi lindo o show de Tia Surica. Foi tocante a participação de Cristina, a Buarque. Foi de gala a intervenção da Tabajara do Samba. Um show sem gordura, marcado pela simplicidade e ausência de mirabolâncias, exatamente como um show de samba deve ser. Repertório preciso, grupo cirúrgico, flauta beirando à excepcionalidade. Tudo encaixadinho porque todos que ali estavam pareciam felizes, satisfeitos por ali estarem.

Pela segunda vez na vida, eu senti lágrimas nos olhos enquanto um deles estava ali fixo no visor da câmera. A primeira vez foi na quadra da Portela, filmando Nelson Sargento cantando "Agoniza mas Não Morre" junto com Wilson Moreira e nessa ocasião, um cara teve a cara de pau de chegar pertinho e perguntar (quase afirmando com cumplicidade) no meu ouvido:
- Você é mangueirense, né?
Eu, vestida de portelense até nas peças íntimas, olhei séria e aborrecida pela interrupção do meu "momento-sei-lá-me-deixe", porque não sei até hoje, respondi séria, seca e com olhos molhados:
- Não.
A segunda vez foi ontem ouvindo Cristina Buarque interpretando Portela na Avenida. Porque Cristina sempre me emocionou, desde lá, quando ela era só uma voz no rádio, cantando algo que, naquela idade minha, eu não identificava como samba - era apenas música (sim, pessoal houve um tempo que tocava samba de terreiro nas rádios, samba bom com gente cantando bem). Acontece que eu tive a honra, glória e bênção de entrar no mundo que os sons do rádio daquele tempo, década de 70 me trazia. E aí, as músicas se revestiram da minha própria história.e vivência nuns quintais e quadras e terreiros.

Quando você conheceu uma música como Portela na Avenida na voz vigorosa de Clara Nunes, anos depois passa a vivê-la no vigor e tons de ansiedade e respeito, ali na arena do "esquenta", na própria avenida, ela se transforma, sim, em mais do que uma música ou hino, é "feito uma reza um ritual"; você descobre a historia da música e fica embasbacado com essa história, você ouve repetidamente a música fazendo parte do coro de centenas (milhares) de vozes na quadra, que te faz pular e praticamente entrar em transe. Daí, uma noite, vem aquela voz da infância, delicada, afinada como poucos hoje em dia no samba conseguem ser e é muita historia somada àquelas notas e tantas outras histórias e o nome disso é Cultura, viu?

Normalmente Tia Surica é uma artista emocionante, mediúnica, aquela entidade que com sua roupa de show, se transforma e ressignifica tudo: A cozinha, os temperos, a luta de uma vida inteira. É a voz da vendedora jovem numa banquinha ali, na frente da quadra, da operária, da artesã no barracão torcendo pena de ema, da baiana que arrumava a fantasia pra sair mais bonita nos desfiles, da conselheira. É a voz do colo e ombro amigo, da simpatia paciente, da falta de paciência impaciente, da pessoa com valores de samba antigo, da artista com muito menos espaço que o merecido, da preta mulher baixinha que largou um noivo pra se casar com o samba da sua escola, num momento que era o casamento com um homem que dava respeito de verdade às mulheres.

Tia Surica leva todos nós na sua voz.

A voz de Surica nos conduz a um mundo que era bom viver, ainda que não fosse fácil

A voz que sabe dizer não, a voz que muitas vezes diz sim. A voz que melhor interpreta Candeia, a intérprete que faz questão de citar nome a nome dos autores que canta porque a interpretação vem na forma de homenagem e pedagogia que informa: são autores da minha Portela querida.

Quando Surica vai pro palco, ela deixa de lado tudo de batalha, sofrimento e dor que viveu trazendo unicamente a alegria de estar ali fazendo aquilo que ama fazer: Cantar. Cantar para um público predominantemente de amigos que sabem o quão rara é essa ocasião, que ela não distingue e a ele agradece à medida que lá de cima, agora transformada numa gigante, ela vai reconhecendo os rostos. Acontece que na beleza do figurino de artista e da satisfação de estar no palco, vem na voz a pungência de quem tanto sofreu mas decidiu dar valor ao que tem valor. Surica é mulher de luta que das dores fez um pódio do qual sacode a bandeira do samba.

Ontem, numa cidade ameaçada por si mesma, onde o verdadeiro carioca anda fazendo falta e o Estado Laico é depredado por seitas e ideias falsas do evangelho dos vendilhões do templo e da Constituição, eu pude esquecer dos receios e assombros das nuvens negras da indiferença e me sentir embalada nesse colo gostoso que essa voz de pastora traz pro palco e generosamente nos entrega. E pra ela que o tempo todo agradece a presença de todos e à dela também que eu quero dizer: Obrigada Tia Surica, você me representa, se eu não fosse sua amiga, ainda assim eu continuaria sendo sua maior fã.
BOM DIA!

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