Existe uma coisa que me comove,me
fere,me dói tanto ou mais que doença em crianças. É morador de rua. Quando eu
era menina em Jacarepaguá, não havia tantos e, ainda acho que tem poucos quando
revisito o meu mais recente antigo endereço na Lapa....
Os que tinham eram personagens
quase folclóricos do bairro por exemplo, na Freguesia, bairro que fui criada,
tinha a Perereca, uma senhora de nome Maria que quando a gurizada chamava de
"Perereca" ela xingava horrores e corria atrás deles, não de mim - porque se eu fizesse isso, não
teria sobrevivido à furia de minha mãe para contar isso aqui. Lembro vagamente,
pois eu era muito criança, que comentavam ela havia enlouquecido de amor.
Tinha também, lá no Remy, perto da
Colônia Juliano Moreira, o seu Waldyr, ele tinha sido pintor e segundo dizem
dos melhores. Sua ex-casa era ali bem pertinho, mas ele não voltou pra lá,
passou a morar na rua, depois de encontrar sua esposa na cama com outro.
Seu Waldyr era tipo maluco beleza, gente boa pra caramba. Habitava a esquina da Outeiro Santo com Rodrigues Caldas, circulava por toda área ali, até o "Sem Porta" um bar que ficava onde a Rodrigues começa e depois virou Igreja Universal. todos, menos os da Igreja, lhe davam comida, estava sempre atrás de um dinheiro pra cachacinha, "só 2 dedinhos de Da Roça"...
Seu Waldyr era tipo maluco beleza, gente boa pra caramba. Habitava a esquina da Outeiro Santo com Rodrigues Caldas, circulava por toda área ali, até o "Sem Porta" um bar que ficava onde a Rodrigues começa e depois virou Igreja Universal. todos, menos os da Igreja, lhe davam comida, estava sempre atrás de um dinheiro pra cachacinha, "só 2 dedinhos de Da Roça"...
Criava a terceira, quarta e quinta pele com os cascões negros da poeira das
ruas e quando ficava demais, o Pedrinho carregava ele pra Colônia e lhe
aplicava um bom banho, corte de cabelo, fazia-lhe a barba e, ele começava tudo
de novo - sua coleção de cascões, cachaça e tristeza, embora fosse um cara
alegre e prestativo.
No entorno do Largo do
Anil, tinha o Zé Grande. Contavam que ele tinha sido policial e se abrigou nas
ruas fugindo também de uma decepção amorosa. Essas personagens habitaram minha
vida ao longo de um período de mais de 30 anos. Foram locais onde morei e tive
esses vizinhos.
Eu ficava estarrecida e sem
entender a escolha por esses caminhos. Morria de ternura por essas pessoas,
ajudava no que eles precisavam e nunca consegui impor que eles devessem mudar,
voltar, retomar suas vidas. Percebia que não havia retorno mas, deveria haver
uma vida nova para cada um deles e, onde se compra uma vida nova?
Eu nunca tive medo de
morador de rua. Sempre me choquei com os 'bulyings' que eles sofriam. Assim
como fiz boas amizades entre prostitutas quando fui fazer um trabalho para a
faculdade - Aliás, sobre isso, tenho que dizer que tinha a maior curiosidade de
entrar naquelas boates lá da Praça Mauá, o que fiz na primeira oportunidade que
tive e nunca fui tão bem tratada na vida e nunca ouvi histórias tão comoventes
e engraçadas porque a tragédia quando é grande, só rindo pra temperar a
amargura.A sociedade é assim, do que não aceitam e não entendem, falam tudo
menos a verdade. Mas esse não é o ponto agora.
No entanto, sempre tive medo dessa situação, do risco de ter de
morar na rua. Medo de enlouquecer, perder o eixo e não achar ânimo para os
eternos recomeços que a vida sempre nos exige. Medo de ter medo das pessoas a
ponto de me tornar invisível e, que maior invisibilidade que a pobreza?
Sim, perdia tempos pensando como as pessoas chegavam a esta
condição. Imaginava um pai de família que perde o emprego, não consegue
recolocação, o aluguel atrasa, a comida acaba, a mulher vai embora com os
filhos, o proprietário retoma o imóvel, o nome vai para o SPC/Serasa, os
empregadores descobrem negando, por isso a ele, mais uma oportunidade. As
roupas se desgastam, a miséria se aboleta, a depressão entra em cena, os amigos
fingem que não percebem, o cara pede um emprego pra eles e eles respondem
blasé: "Sabendo de alguma coisa te falo", "você é
guerreiro(a)", "Deus está no controle" e evasivas parecidas. A
princípio comentam o infortúnio e depois o evitam, o esquece. Por sua vez, o
agora coitado não tem cara de botar a cara e "quem não é visto, não é
lembrado".
Paralelamente às minhas elucubrações, corria a realidade de
pessoas que saem de casa para não sofrerem violência, espancamento, abusos. Que
muitas delas até um certo momento, encontrando uma oportunidade, sairiam desse
umbral social. Nenhum deus ou diabo sabe tanto dos requintes de crueldade
quanto o ser humano que os conhece e é capaz de praticá-los.
Eu imaginava também que a pessoa para viver a situação de rua
tinha que ter uma pré-disposição. Mas nada afastava de mim o terror de um dia
parar lá. Não sobreviveria muito tempo. Não sou de grandes apegos, mas sem pelo
menos um lápis, papel, música e principalmente muita conversa eu não
conseguiria sobreviver.
Nunca enxotei uma pessoa dessas quando, bebericando pelas
calçadas elas entravam na roda para pedir, atitude que várias vezes me livrou
de assalto ali pela área da Central. Pelo menos por duas vezes consegui
explicar pro moleque cracudo, que tava na merda tanto quanto ele, geralmente
vindo de um trabalho onde o pagamento não rolou, ficou pra depois e, por isso
estava ali, naquele sufoco, com o estômago gritando, carregando maior peso, sem
grana pro táxi, perdida na sequencia dos BRS que eu ainda não havia conseguido
decorar...
Ainda que tenha percebido que não são mais os tempos românticos de Dona Maria e seu Waldyr (ler a parte 1). Os mendigos românticos, enlouquecidos por amor, evadidos de suas casas pela dor, ganharam a volumosa companhia dos deserdados de alguma sorte, dos nascidos ou crescidos (des)cuidados pela própria rua. Passaram a usar o crack em vez da cachaça como paliativo e se reúnem com aqueles em que a droga não é o consolo (consequencia, fuga) mas o motivo, a razão de eles estarem lá.
Ainda assim, me dói na alma ver um ser humano como eu, viver
desse jeito, principalmente por saber que ali passarão a pertencer a um outro
reino muito menos valorizado que o animal, vegetal ou mineral. Passam a ser
invisíveis e quando vistos são desprezados como se fossem zumbis, assombração
ou qualquer coisa que se tema muito ou provoque muito nojo e que é melhor mesmo
não ser notado.
A
humanidade é assim, quem não é igual perde o valor. E talvez seja esse o meu
real temor.
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