Meu primeiro sobrinho nasceu em 1970, quando eu tinha 6
anos, a irmã dele em 1975 e o último rebento dessa ramificação da família foi mais
um garotão nascido em 1979 quando eu já tinha idade para batizá-lo. Nós
tínhamos idade para sermos irmãos. Durante um bom tempo conviveram comigo, com
minha avó e minha mãe. O plano era deixar de pagar aluguel até que conseguissem
o suficiente para uma casa própria. Lá em casa era um matriarcado, minha mãe
elaborou e executou cada etapa desse planejamento. Foram construídos dois
grandes cômodos no quintal lá de casa, colados numa grande varanda, com piso chamado
"vermelhão" que quando eu ia lavar transformava numa piscina de sabão
em pó para que eu e os sobrinhos pudéssemos deslizar, nos empurrar, brincando de
super-herói, tapete voador e qualquer coisa que voasse.
Quando eu tinha uns treze ou quatorze anos, dei o meu
primeiro beijo. Foi dentro do carro do meu cunhado, no irmão dele, no banco da
frente, com os sobrinhos fazendo uma tremenda algazarra no banco de trás,
porque éramos um tanto inseparáveis, embora eu já me sentisse mais velha e os
achasse uns pirralhos amados, porém inconvenientes. De repente eles
silenciaram, um deles queria vir para a frente e o mais velho disse: "Eles
estão se amando". Ri, no entanto,
achei mais bonito do que engraçado.
Anos depois o portão lá de casa era uma efervescência
feminina. Me descobri sapatão, estudava num colégio onde a imensa maioria era
de garotas e era muita menina frequentando lá em casa para estudar, para fugir
dos pais, para os mais variados motivos. Alguns
vizinhos olhavam estranho como se suspeitassem que esse movimento continha umas
tintas lésbicas, mas eu tinha quase certeza que estranhavam a bagunça mesmo,
pois minha mãe não permitia visitas quando não estava em casa. Uma
dessas garotas virou minha namorada e não saía mais lá de casa e a gente fazia
de tudo para enrolar as crianças e ter alguns momentos a sós, o que só conseguíamos
no portão, na rua, mas logo as crianças vinham e o namoro virava uma algazarra.
Minha
namorada vestia roupas masculinas, parecia mesmo um "garoto", minha
mãe a odiava só por isso, e eu começava a virar um garoto também e foram os
sobrinhos os primeiros a perceberem essa mudança. Foram eles que perceberam,
primeiro, antes de mim, que aquela garota gostava de mim e um dia um deles me
"enquadra:"
- Porque você não beija a tia Eithel?
- Por que você está perguntando isso?
- Porque ela gosta de você.
–
Ah, meu querido, vem cá. Coloco ele bem pertinho e digo: Não é assim essa coisa
de uma gosta e outra beija. Beijar é uma coisa muito especial, conecta os
corações
- Conecta?
É.
Conecta é quando uma coisa toca na outra e cria energia. Essa energia tem que
ser boa. É como uma tomada, uma lâmpada. Conectar é um toque que gera alguma
coisa boa para os dois lados porque os dois lados precisam ter a mesma
frequência.
- Frequência?
-
Frequência é como um ritmo.
Levantei,
peguei-o e o sacudi fazendo-o dançar comigo.
Não podemos dançar juntos, eu dançando rock e você dançando o bolero da
vovó.
-
Entendi. Você tem que gostar dela igual ela gosta de você pra poder beijar
direito e ficarem felizes.
-
Isso!
Meu afilhado e minha sobrinha nunca perguntaram sobre
o meu relacionamento, assim como o mais velho, para eles era normal o afeto,
ainda que eu evitasse cenas românticas na presença deles e eles não entendiam
por que. Viam beijos nas novelas, viam beijos dos pais, viam beijos nas ruas,
nas praças.
Eu sabia que não era por eles, mas por todos os que
preferem a criança exposta às violências,
desde o desenho animado até o noticiário com balas perdidas de militares
achando corpos inocentes infantis, passando pelas guerras e brigas da ficção e
da realidade. Preferem crianças famintas, expostas a tudo, nas ruas, marquises
e sinais de trânsito do que adotadas, bem tratadas, amadas, queridas por pais
gays.
Meus sobrinhos temiam brigas e gritos, isso para eles não
era normal. Além da minha ausência de beijos, as ofensas e discussões era o que
eles não entendiam. Uma mulher parecendo namorar outra mulher, para eles era
apenas amor.
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