Quando eu era guria e pegava num livro, só o largava quando
terminava de ler. No reino dos livros não existia louça pra lavar, dever
escolar pra fazer, sem culpa no mundo da literatura e tudo era muito bom.
Minha avó enlouquecia, reclama, se queixava para minha mãe
(filha dela), achava absurdo. Minha avó não sabia ler nem escrever e era
imensamente controladora e eu tive que viver muito pra começar a tentar
entender o que ela sentia, pois era um conteúdo, uma experiência que ela não
podia analisar, julgar para controlar, ao mesmo tempo, como entender o que
tantos signos ininteligíveis, para ela, poderiam entreter uma criança por tanto
tempo, ao ponto de ela preferir "aquilo" - o livro, do que a TV ou
brincar na rua?
Era preciso que ela descobrisse o que havia ali, boa coisa
não haveria de ser e como isso não lhe era possível, a sua estratégia passava a
ser me impedir de ler, eliminando o meu prazer.
Nessa idade eu não tinha obrigações domésticas e era
proibida de brincar na rua, lá em casa não tinha outras crianças. Um cachorro amarrado
na casinha, uns gatos que mais desapareciam do que eram vistos, um abacateiro
esguio, umas goiabeiras que limitava sua generosidade ao seus frutos e apenas
isso. Não havia nenhum pé de laranja lima com galho onde eu pudesse sentar como
se fosse sela de um cavalinho. Ainda bem. Certamente eu teria ido parar no
hospício se me desse a esse desfrute.
Três coisas advindas dessa época me ocorrem:
O quanto eu entendia as pessoas que passavam horas na
internet lendo coisas esquisitas;
Meus sobrinhos que não eram muito chegados aos livros mas
amavam uma TV e eu não os incomodava;
e o quanto as pessoas inseguras, infelizes, seja por falta
de oportunidade de vida melhor ou porque são ruins mesmo, podem tentar tirar de
nós coisas simples que nos façam felizes.
O meu tio, filho da minha avó, vivia agarrado com pequenas
brochuras de bolso, quase sempre histórias de far west, as quais ele me
emprestava. Meu tio era um preto bonito, com voz linda que tinha 13 filhos e
muito pouca paciência com criança. Gastava toda a sua paciência jogando cartas
com os meus irmãos nos finais de semana. E como lá em casa não tivesse muita
gente pra conversar era com ele que eu puxava assunto no seu horário de almoço,
servido pela minha avó com farinha e pimenta, água, suco ou refresco e depois
ele ia pra cama tirar uma soneca, precedida pela leitura do livro que acabava
lhe cobrindo os olhos e vedando a luz para que tudo ficasse perfeito. Claro que
ele preferia me emprestar um livro que me mantivesse calada! Foi assim que eu
li o Homem Que Calculava, de Malba Tahan, O Egípcio e muitos livros enormes com
mais de 300 páginas e nenhuma "figura". Foi assim que minha avó passou a
enlouquecer de ciúmes dessa ligação e foi assim que eu entendi que se alguns
tentam nos tirar o prazer que não conseguem compreender, há os que vão nos dar
qualquer prazer para que possam se deleitar em paz.
E eu que cresci achando que tive uma infância estéril e sem
graça.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Fique à vontade pra dar sua opinião.