Quando eu era menina me
atracava com um livro e só conseguia deixá-lo quando chegava ao final. Alguns
livros ainda me tomavam algum tempo após a leitura porque eu ficava parada de
olhos no ar lembrando de algumas passagens e com saudades das personagens. Louco,
não? Mas era como se aquelas "pessoas" me tivessem feito companhia e
sentia alguma tristeza por não poder conhecê-las ou "reencontrá-las".
De certa forma era um luto.
Do outro lado da casa minha
avó resmungava, arrastava os chinelos, fazia reclamações, xingava. Não entendia
como eu tinha a "cachimônia de passar tantas horas sem fazer nada".
Sim, ela entendia que a leitura era todo o nada que eu, alma geneticamente
preguiçosa fazia. Minha avó não sabia
ler, embora fosse boa nas contas e, jamais errava ou deixava que errassem num
troco. Ela queria que minha mãe arrancasse-me o livro das mãos, me desse uma
boa bronca, quem sabe uma surra e me obrigasse a fazer aquilo, que na concepção
dela, era a minha obrigação.
Minha mãe depois que passou a
trabalhar fora, viciou-se em palavras cruzadas e caça-palavras depois, passou a
ler aquelas publicações em brochuras que tinham nomes de mulher. Era Karina,
Sabrina, Júlia e coisas assim. Eram romances que muitos diziam não ter valor
literário algum. Jamais abandonou as revistinhas de palavras cruzadas e ainda
trazia pra mim as de nível fácil e uma direcionada às crianças que tinha o nome
de "Picolé". Eu procurava
sempre ficar por perto fazendo a minha palavra cruzada enquanto ela
fazia a sua. Com o tempo dividíamos as brochuras e trocávamos impressões sobre
essas publicações. Mesmo quando eu crescida já sabia da reputação da ausência
de valor literário (ora, bolas!)
Acho que minha mãe sempre teve
gosto pela leitura mas a vida dura não lhe dava tempo, tempo para ler e tempo
para conhecer o que gostaria de ler. Trabalhando fora, tinha na ocasião, pelo
menos duas horas de condução, intervalo
na hora do almoço e claro, passava pelas bancas onde pôde conhecer algo pra ler
e fazer isso nas folgas.
Meu tio era filho da minha
avó, irmão da minha mãe. Ele sempre tinha um livro no bolso traseiro da calça
jeans. Trabalhava próximo da nossa casa onde ia almoçar e tirar um cochilo de
sesta. Nunca soube se ele se deitava para ler e cochilava ou se cochilava
porque se deitava para ler depois da primeira parte do seu expediente num trabalho cansativo para
o qual acordava muito, muito cedo. Ele era gari e naquela época a carrocinha de
lixo, de madeira e pesada, trazia a sigla DLU - Departamento de Limpeza Urbana.
Mesmo quando as carrocinhas se tornaram mais leves e ele deixou de empurrá-las
porque fora promovido a inspetor, ainda quando a sigla da carrocinha mudou para
Comlurb, ele continuava indo almoçar lá em casa e fazendo sua sesta sem jamais
abandonar seus livrinhos. Eram pequenos almanaques, 1/4 de uma folha A 4 quase
sempre com histórias de faroeste.
Minha avó não implicava com a
leitura do meu tio, nem com a sua deitadinha para ler. Muito pelo contrário,
esquentava-lhe a comida, colocava no prato e ia servi-lo onde ele estivesse -
porque ele às vezes lia na poltrona da sala e ali mesmo, livro sobre o rosto
para quebrar a luminosidade, roncava um pouco.
Hoje, uma tarde chuvosinha e
preguiçosa dei de lembrar isso e pela primeira vez "atinei" que
diferentemente do que pensei a vida toda,
não era por não saber ler que minha avó implicava com a minha leitura.
Com a leitura da minha mãe, eu sei, ela não implicava porque era ela a
provedora da casa. Trabalhava numa escala pesada de 12 x 36, às vezes 24 x 48,
longe, muito longe da nossa casa num serviço muito cansativo. Talvez implicasse
comigo porque eu era criança e não podia me defender, pois estávamos no tempo
"cala a boca". Talvez
repreendesse meu hábito de ler pelos mesmos motivos que pessoas letradas
criticam obras e desprezam a leitura
alheia. Talvez ela tentasse me dar a educação que recebeu e nela não estava
incluído ler e escrever. Minha avó era do tempo que se aprendeu a andar e falar
já tinha que trabalhar. O povo lá de casa vinha das lavouras e criações. Pra
comer tinha que plantar e criar porque as opções de comércio eram raras e
caras. Os críticos da leitura dos de poucas posses não sabem o que é isso, se
soubessem louvariam todo tipo de leitor e não se oporiam à brochuras dos
jornaleiros.
Mesmo quando a minha mãe ainda
não havia desenvolvido o hábito da leitura, comprava-me revistas em quadrinhos
e eu tinha preferência por aquelas publicações com apelidos de meninas. Eram
Bolota, Brotoeja, Tininha. Gostava também do Riquinho, Horácio, Turma da
Mônica. Menos do Chico Bento. Implicava com o sotaque caipira, achava feio e às
vezes não entendia. Achava chato o Chico Bento pela forma de ele falar e não
apreendia as mensagens que seu gibi passava.
Acho que a gente tenta pegar o
que não entende e aprisionar na rigidez dos limites da nossa ignorância.
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