26 de dez. de 2020

HABLANDO CON AMERICA

 

Eu tive uma vida muito marcada pelos aspectos de um Brasil colônia que foi normalizado, normatizado ao longo do tempo. São coisas desumanas, sempre sem sentido que atravessaram os séculos como coisas normais porque são aplicadas aqueles que justamente foram desumanizados, objetificados. Alguns desses aspectos eu só tomei conhecimento porque sempre li muito, sempre fui muito interessada em História e nunca confiei nas histórias narradas nos livros e mastigadas para nós professores, para que regurgitássemos pros filhotes das gerações seguintes.

Essas coisas fazem parte do cotidiano da gente e a gente nem percebe. A percepção quando acontece, é eventual e talvez por isso a gente tenha tanta dificuldade de se organizar para em bloco lutar pelas mudanças, fazer cobranças ao sistema e assim somos cobrados, criticados. Nós somos a terceira pessoa do plural, eles, ou do singular: “o povo” ou ainda, “o brasileiro”. “O povo que não gosta de ler”, “o brasileiro que não sabe votar”, o “povo malandro”, “o brasileiro vagabundo”. O brasileiro criado pelos sequestradores, saqueadores que nos encarceraram por seus crimes, nos tiram tudo e ainda falam mal de nós que contritos agradecemos afinal, eles tem a pele alva e a força bruta.

Por exemplo: Fui dada em adoção porque meus pais não tinham condições para me criar ou especificamente para me enterrar. Aos nove meses de idade eu não tinha registro, estava doente e fui desenganada pelo médico ou o equivalente a ele. Até ali não havia grana pra certidão de nascimento, também não para o atestado de óbito. Entre uma coisa e outra, não existia possibilidade de eu ter um tratamento ou alimentação. Normalmente a resposta que eu tinha para isso era que “quem não tem condição de ter filhos, não deve fazer filhos”. Simples, assim.

Meu pai era preto, minha mãe “enganava” como branca apesar dos traços indígenas. Ela era mais velha que ele. Parece que o padre não quis casar os dois. Eles foram morar juntos, uma prática condenável, aliás várias. Amasiamento inter-racial de uma mulher mais velha que o homem.

Meus pais se separaram logo assim que eu nasci, eu fiquei com a minha mãe que por não ter muita escolaridade e por ser o costume mesmo, trabalhava como doméstica e não conseguia emprego tendo nos braços uma criança doente que chorava o tempo todo. Isso era visto como um ponto fora da curva, era um problema dela. Cada patroa apenas dispensava uma empregada mas quantas mulheres temos até hoje na mesma condição?

Meu pai ficara com a minha irmã mais velha e a mandou para a casa de uma irmã dele e essa divisão teve menos a ver com a nossa idade do que com a cor da nossa pele. Minha irmã tinha pele escura, eu não, e isso bastava para que meu pai fizesse a célebre e usual declaração masculina da época: “Esse filho não é meu”.

Tudo isso me fez entender sem compreender muito bem, desde bem jovem que os filhos eram das mães. Que comunidade e família eram apenas palavras de boa sonoridade e rima fácil mas apenas palavras que não me explicavam para que os homens existiam e qual o papel deles no mundo. O que mais eles poderiam fazer além de criar problemas, situações difíceis sob as (ausência) luzes das inverdades. Eu precisei de muitos anos pra enxergar que eu pertencia a uma classe de excluídos pela própria exclusão e que não era minoria. Pessoas que são penalizadas por terem nascido num ambiente onde não se é humano, a gente é só força de trabalho, não importa como vivemos ou o problema que temos, a gente precisa funcionar dentro de um papel que nos impõem e ponto.

Nasci e fui criada num bairro que atualmente pertence à Zona Oeste do Rio de Janeiro e que tem a peculiaridade de ter sido Zona Rural, de ter demorado a se desenvolver e, antes, ter sido também Zona Industrial. Um bairro com dimensões municipais usado pelo Estado como área hospitalar para distúrbios mentais, tuberculose, hanseníase. Antes de tudo isso foi fazenda do Barão da Taquara, quintal de senhores de engenho como Marquês de Jacarepaguá, Baronesa, duquesa de Jacarepaguá. O que dizer de uma nobreza com esses nomes indígenas? Em Jacarepaguá ninguém é educado, todos são colonizados, quiçá, adestrados.

As minhas lembranças de infância, identificam a partir do vestuário e vocabulário um certo sotaque — pessoas urbanizadas e pessoas da roça. Meus tios avós que tinham as mãos calejadas, os rostos muito vincados — eu percebia mas não entendia — Eram trabalhadores rurais de dentro do perímetro urbano e eles tinham todo um código de ética e ótica diferentes da gente que morava ali pertinho, no mesmo bairro mas que não era da roça. Jacarepaguá era alguma coisa entre o Centro, a Zona Sul e o subúrbio, mesmo sendo longe disso tudo e não sendo nada disso. Mas tudo isso dava características muito especiais às pessoas dali. Minha família possuía uma diversidade inusitada, uma réplica em pequena escala de um país colonizado uma casa grande preta com senzala branca. Nunca compreendi muito bem porque só eu comecei, em casa mesmo, a entender, lidar e gostar de diversidade. Éramos criados para sermos invisíveis. Uma forma de não causarmos problemas e não sofrermos.

FORMAÇÃO:
Fui beneficiada pela Lei de Diretrizes e Bases, 5692 de 1972.  
E daí?

Daí que não precisei fazer concurso para estudar o “ginasial”; 

Daí que isso significa que na minha família inteira, ninguém nunca tinha feito o “ginasial”, de 5ª a 8ª série;

-O que significa que eu não pude ter nenhuma orientação sobre caminhos profissionais e continuidade dos estudos e talvez tenha feito tudo errado, mas orgulhosamente, fiz.

-E que eu precisava devolver logo a oportunidade de ter estudado. Contribuir com o orçamento familiar, da família que havia me acolhido mas não estava mais inteira, posto que meu pai de criação tinha desertado da tarefa de criar os 5 filhos que fez mais eu que aceitou cuidar. Questionar os conceitos “palavra de homem”, “homem de verdade”, “provedor da família” foi algo que sempre me fez bem, embora não tenha me privado das dores, incerteza e inseguranças.

A minha geração teve muitas “facilidades”, por exemplo, sou do tempo que a carteira profissional “de menor” foi abolida; Lugar de criança era na escola, mas a gente deixava de ser criança cedo também, o que fazia com que as coisas não mudassem muito.

Sempre estudei em escola pública e as escolas públicas de nível fundamental tinham uma coisa chamada “Caixa Escolar.” Era um envelopinho que a gente levava para casa e devolvia para a escola com uma quantia dentro. Ninguém ficava sabendo, mas todos que contribuíam também podiam se beneficiar, retirando material escolar ou comprando mais baratos, livros e até uniformes.

Se tinha discriminação?
Claro que tinha! Quanto mais benefícios se retirasse da Caixa Escolar, maior a discriminação, isso por parte das crianças que naquela idade, transportavam exatamente o que ouviam em casa. Se é que podem me entender quanto ao impacto que isso teve na formação dessas cabecinhas regadas pela ditadura e suas proibições. O aluno da caixa escolar até podia ser burro. Aliás, esperava-se dele exatamente isso: Dificuldade de aprendizagem e era sempre motivo de estranhamento um aluno branco usando os benefícios da caixa. Por outro lado, não era nada demais ser aluno da caixa escolar, mas o fato é que a grande maioria dos dependentes desse benefício, eram pretos e quanto mais pretos menos contribuíam e mais “retiradas” faziam. O estranho disso era o surpresa que causava um aluno beneficiado ser bom aluno, ter notas altas.

RELIGIOSIDADE:

Eu sou da época que todo mundo era católico mesmo quem tivesse outra religião. Ser católico era uma obrigação, mais ou menos como querem fazer hoje com a neopentecostal. Só que apesar de tudo, a igreja católica era mais Cristo e Novo Testamento. Tinha Dom Hélder, Irmã Dulce e Teoria da Libertação. Mentira sincera não deve ser pecado.

Minha mãe era da Umbanda mas colocava os filhos para fazer catecismo e Primeira Comunhão. Isso foi importante porque não tive o entrave de julgar as pessoas com réguas religiosas. A gente só não podia contar pra todo mundo porque ficava mal visto se fosse macumbeiro. Era normal levar as crianças para benzedeiras, rezadeiras, pretas-velhas. Toda criança tinha um pequeno alfinete com duas figuinhas, uma de arruda e outra de guiné preso na camisinha-de-pagão. Ao mesmo tempo era muito usual a oração diária da Ave-maria, às 18 horas, quando e se colocava um copo d’água com uma vela acesa para se rezar junto com o programa de rádio. Ali na Freguesia, o sino da igreja Nossa Senhora do Loreto tocava nas horas canônicas e a gente interrompia o que estivesse fazendo para tomar a “bênção”. Nos terreiros era comum encontrar muita gente, católica incluindo as madames. Ninguém era menos católico por causa disso, pelo contrário, no entanto, éramos muito mais católicos na hora preencher a ficha na escola. Os “evangélicos” da época eram poucos e chamados de “os bíblias” ou apenas “crentes”. Eram pessoas estranhas que implicavam com as imagens de santos que tinha lá em casa, as mulheres não cortavam cabelo, quando grandes demais o prendiam em coques, não pintavam as unhas e usavam vestidos ou saias compridas que a gente chamava de “maria-mijona”. Eu tinha medo tanto de entidades da umbanda quanto dos bíblias, as entidades sempre contavam o que eu fazia escondido, os crentes tinham um diabo só deles mas que afirmavam que era nosso.

Recentemente, com o comportamento neopentecostal e a opressão que consegue exercer por ter adentrado aos espaços de poder político, a régua religiosa começou a funcionar e confesso, tenho que em articular, me doutrinar para poder ouvir a pessoa depois que fico sabendo que ela é crente. Tenho um comportamento preconceituoso, tal qual “os outros”. Quando me dizem: — Sou evangélico. Pergunto qual a denominação. E aí de acordo com a resposta, eu relaxo ou me armo. Mesmo. Estou errada. Estou tentando mudar mas tenho duvida sobre o que devo mudar. Tudo o que vivi me dá a sensação de quem em algum momento vou bater num muro, mais ou menos como quando eu me afirmava sapatão e ouvia as coisas mais idiotas do mundo. Havia aquelas pessoas que diziam não ter o menor preconceito, mas que eu sabia que assim que virava as costas vinham discursos do tipo:

- Tão nova, bonita, estudada...
- Serpa que sofreu algum trauma?
- Anda não encontrou o homem certo

E isso me soa muito familiar com os discursos de quando eu me afirmava preta:
- Você não é preta! Você é morena!
- Que isso! Preta, não!

Ser preto é algo tão terrível que as pessoa que gostam da gente precisam nos salvar disso, nos retirar dessa lixeira. Até hoje pessoas tentam me ofender me chamando de sapatão ou de crioula. Por que, né?

Eu conto essas coisas porque tudo isso fez parte do meu entendimento de mundo. Um mundo que tive que entender sozinha. Empiricamente na base do erro e do acerto.

Um entendimento que só veio muitos anos depois quando tive espaço para errar e também acertar e foi essa compreensão que me tornou uma pessoa de lutas, mesmo eu não estando, nunca, em nenhum movimento organizado. Nunca consegui fazer parte de nenhum. Porque eu nunca me senti uma coisa só. Nos movimentos falta essa visão geral. Faltava a compreensão da diversidade. Eram guetos e acaba sempre rolando um “Fla X Flu” e de repente, surgem divisões conforme as interseccionalidades. As mulheres não se viam como mulheres que eram mas se tratavam a partir das diferenças que possuíam. Sempre entendi que o mundo não tinha muito como dar certo. E atualmente, cheguei a imaginar que o vírus nos tornaria mais próximas apesar da distância, dando a todas porções diferentes das mesmas desgraças.

Muitas vezes eu ouvi que não podia falar sobre determinados assuntos porque “não era preta o suficiente” ou não era retinta. Parece-me que faltam aos movimentos entregar o que cobram e a noção de que ser brasileira não pra amadora, nem pra mulher fraca. Politizam o que é humano, orgulham-se de conquistam que não passam do meio para baixo da pirâmide social. Quase sempre as lideranças viram celebridades e o foco vai para outros lados, individualizados, sim… Se tornam teóricos, autores, vendedores de livros e todo o tema se resume em texto de um potencial best-seller.

Eu penso que o movimento preto não tem que se preocupar com colorismo, movimento de gênero não tem que se preocupar com a cor de pele das mulheres, apenas abraçá-las, e buscar soluções para as dificuldades que as interseccionais têm e colocar uma carga maior de atenção e bater mais forte em favor daquelas que obviamente sofrem mais preconceitos.

Mulheres brancas têm privilégios? Têm. E tem que ter seu lugar de fala, sim!

— Desculpa, não tenho culpa mas tenho obrigação de ser antirracista e lutar contra o racismo. Simples assim.

Não se pode erradicar o lugar de fala das pessoas, isso é proibir. Os movimentos organizados tem a obrigação de conduzir, mediar e nao reproduzir o comportamento ditatorial que a sociedade como um todo, se achando branca, tem tido até aqui. Numa guerra não se escolhem os soldados por preciosismos e, estamos em guerra, todo braço pra lutar ao nosso lado, precisa ser benvindo ou estaremos criando uma guerra dentro da guerra, deixando o inimigo numa boa, na sua eterna e privilegiada zona de conforto

ONG: Eu sou voluntária desde muito novinha. Sempre dei aulas sociais

Comecei levando o conteúdo escolar para as crianças que ficavam internadas por muito tempo e acabavam perdendo o ano. A ideia era mantê-las conectadas com o mundo e atualizadas de modo que que quando voltassem à escola “não repetissem de ano”. Além disso, essa atividade as deixavam muito mais colaborativas com o tratamento.

Aí surge a aids. Era dilacerante ver as consequências do preconceito. As pessoas não se dispunham a colaborar com as ações para ajudar pessoas que tinham a doença. Era aquela visão que falei no início: “Problema dela.” No entanto, as pessoas se apiedavam e colaboravam para entidades que lidavam com questões do câncer. Então percebi que não era uma questão de poder aquisitivo, mas de julgamento

A Casa da Vida surgiu para ajudar aqueles que não contavam com muita ajuda por questões de preconceitos. Quem? Mulheres contaminadas pelos parceiros e imediatamente estigmatizadas. Crianças que perdiam os pais e ficavam a caro das avós, geralmente senhoras que viveram de trabalhos braçais a vida toda e devido a idade, em muita condição de trabalho

Feminista, eu?

Nunca foi uma questão para mim ser ou não feminista. Nem sabia do que se tratava. Não estava no meu radar. Até eu fazer o curta Procuram-se Mulheres e nos debates após as sessões ter essa pergunta para responder. Era um tal de:
-Você enquanto feminista….
-Você é feminista?
-Como feminista o que você acha de…

Em Recife respondi que de onde eu vinha toda mulher que não aceitava o lugar que lhe impunham, era feminista. Não era uma questão de escolha. Não dava tempo para estudar a teoria. Cheguei aos 50 anos militando por direitos e espaço, incluindo mulheres e drags em tudo o que eu fazia sem nunca ter lido um livro de teoria feminista. Pra falar a verdade, ainda não li nenhum inteiro até hoje.

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