13 de dez. de 2020

SANTA LUZIA e EWÁ Santa e orixá feministas

 

Hoje é dia de Santa Luzia. Protetora dos olhos e visões, aquelas que não necessariamente partem do olhar físico.

Santa Luzia entrou na minha vida de uma forma que eu não entendia. Minha irmã, recentemente falecida, tinha uma foto que ela odiava: Vestidinha de branco com aqueles vestidos tipo de batizado, com duas marias-chiquinhas muito acima das orelhas, sentada numa cadeira imensa, parecida com aquelas que a gente faz foto de beca na formatura, meias 3/4. No conjunto, uma bonequinha desajeitada com um pedacinho de nada de pernas. Sim, ela tinha razão de odiar a foto. Essa foto muito antiga tinha uma parte embaixo que era para se escrever dedicatórias. Quando aprendi a ler estava lá, a explicação, que naquele momento da fotografia Rosenita estava cega.
Minha mãe fez promessa pra santa, Sim, sim, sim, minha mãe fez promessa pra mim também mas é outro papo. Os antigos eram assim, o SUS rápido e imediato era aos pés dos santos-autoridades-competentes e estes davam bem conta do recado.
Anos depois, acompanhei pelas revistas, Roberto Carlos, o rei, fez promessa para a recuperação da visão do seu filho. O Rei não fazia shows nos dias 13 de dezembro. Era a promessa.
Muitos anos depois, morando nos arredores da Lapa, finalmente adentrei à igreja da santa e fiquei devota porque pela primeira vez na minha vida vi imagens de de anjinhos pretos numa igreja. Eles eram tais quais os outros tradicionais anjinhos, só que com pele retinta e estão pintados nas paredes da sala de ex voto.
A história de Santa Luzia nos conta que ela viveu no século IV, perdeu o pai cedo, a mãe queria que ela se casasse com um pagão, no entanto, ela havia em segredo, se consagrado a Jesus com voto de virgindade. A mãe dela ficou muito doente e ela fez uma promessa que, curando-se a mãe, seria freira ou o equivalente naquela época, ou seja, nada de casar, muito menos com um pagão!
A mãe curou-se e acatou o desejo da filha. O pretenso pretendente ficou pistola-macho-da-silva e entregou Luzia às autoridades.
Ela foi condenada, sem julgamento, pois como em todo período de ditadura, invasão e colonização, basta a denúncia e, ser cristã naquele tempo era crime, ponto e basta. O que lhe restava a fazer era renunciar à fé. Pois ela foi condenada a ser prostituída! E o que ela fez?
Disse:
- “O corpo fica poluído somente se a alma consente”
Foi um rebuceteio. Aconteceu que os guardas não conseguiam se mover para levá-la à força para o prostíbulo ou para o estupro, sei lá, não sei como se executava uma sentença dessas. A imobilidade dos guardas é atribuída à interferência divina. Então, tentaram queimá-la na fogueira e também fracassaram. Por último, decapitaram-na.
Outra história da santa é que teriam arrancado ou vazado seus olhos e mesmo assim ela, pela graça de deus, continuou a enxergar. E esse é o ponto.
Mulheres, para terem registros na História, obrigatoriamente, precisavam ser virgens, puras e castas. Seria no mínimo vergonhoso assumir-se que ela pode ter tido seu corpo violentado como forma de punição pelo seu desejo de permanecer virgem. Eu prefiro não pensar nisso agora, pois seria obrigada a escrever que desde o século IV estamos sujeitas à mesma doença do poder masculino, supostamente hétero. Patriarcado. De maneiras que vou dividir com vocês as minhas reflexões.
Manter a visão após os olhos arrancados é a metáfora mais concreta que conheço. Nascemos com os olhos fechados e vivemos num sistema que faz de tudo para que assim continuemos. Nas escritas sagradas existem muitas menções da visão além do olhar físico e Cristo "morreu" exortando que desenvolvêssemos essa visão. "Estamos no mundo mas não somos do mundo", "o pior cego é aquele que não quer ver", "cego guiando outro cego" e a minha preferida: "Quem me tocou?", disse cristo espremido numa multidão, quando a "mulher com fluxo de sangue" em seu desejo se comunicou com ele.
Peçamos à Santa Luzia pela saúde dos nossos globos oculares, neurônios e todas as ligações que permitem que eles transformem o escuro em visão, mas acima de tudo, que ela nos restabeleça a visão elucidativa de tudo o que nos cerca.
Que possamos ver com os olhos de dentro, aqueles que mesmo arrancados continuam a enxergar claramente. Esses olhos, ninguém nos tira - mas podem turvar.
É o que vale, é para isso que estamos nesse mundo.
Na nossa diáspora, Santa Luzia é sincretizada como Ewá. Sabem por que?
Porque Ewá também domina a vidência. Aquela que não depende dos olhos. Ewá é a dona das cores por ser irmã de Oxumare, da beleza e sua lenda também é atravessada por pretendentes atraídos por sua beleza. O reino onde vivia Ewá ficou tão cheio de homens pretendendo casar com ela que ela se irritou e produziu um imenso estrondo que deixou todos PARALISADOS (perceberam?) E Ewá foi se transformando como uma luz do sol, perdendo a forma, tornando-se translúcida até virar uma poça d'água que foi evaporando à vista de todos até formar uma imensa nuvem no céu com o formato de um imenso coração.
Ewá, como Santa Luzia, não se casou e, na minha interpretação, ambas deixam o registro de que o corpo da mulher a ela pertence e a beleza física é o que menos importa, apesar de os homens não conseguirem ver muito além das proposta estéticas que atormentam nossos dias e as mulheres caírem o tempo todo nessa armadilha 'propagandosa'.
Santa Luzia e Ewá são padroeiras dos oftalmologistas e das pessoas com problema de visão. Deveriam também ser padroeiras de todos aqueles que no mundo de hoje, como no de ontem e sempre, são chicoteados pelo cerceamento do direito de ter uma fé e das mulheres que precisam morrer lutando por manter o direito aos seus desejos e direitos sobre seus próprios corpos.
A oração de Santa Luzia evidencia sobre as visões que devemos ter. Vou colar ela aqui pra vocês:
"Ó Santa Luzia, preferistes que vossos olhos fossem vazados e arrancados ao ter que negar a fé e conspurcar vossa alma; e Deus com um milagre extraordinário, vos devolveu outros dois olhos sãos e perfeitos para recompensar vossa virtude e vossa fé, e vos constituiu protetora contra as doenças dos olhos, eu recorro a vós que protejais minhas vistas e cureis a doença de meus olhos.
Ó Santa Luzia, conservai a luz de meus olhos, de minha alma, a fé pela qual posso conhecer o meu Deus, compreender seus ensinamentos, reconhecer o seu amor para comigo e nunca errar o caminho que me conduzirá, onde vós Santa Luzia, vos encontrais em companhia de Anjos e Santos.
Santa Luzia, protegei meus olhos e conservai minha fé. Amém.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Fique à vontade pra dar sua opinião.