30 de dez. de 2020

O mundo acabou os sofridos não perceberam e os exploradores seguem capitalizando culturas e dores

Sempre fui apaixonada por ano novo em proporção inversa ao natal. Natal para mim acabou no dia que descobri que não era só o papai noel que não existia, mas que era uma festa de aniversário e que todo mundo cagava pro aniversariante mesmo ele sendo uma figura importante. Não via ninguém preocupado em ofertar algum presente para aquele aniversariante incrível, que segundo diziam, deu sua vida por nós.

Quando vi uma imagem do Cristo negro, milhares dos meus dois neurônios fizeram conexões com várias visões, vivências, pensamentos e achismos que tive ao longo da minha vida, curtinha até então. Em fração de segundos entendi que Cristo era um genial porém pobre, não letrado, imigrante e sem teto sua história foi apropriada e recontada na versão dos dominadores que deram ênfase ao que ela não continha. Pessoas de denominações religiosas me atormentavam na infância pelo fato de eu usar crucifixo e imagens de santos, diziam que isso me aproximaria dos antigos pagãos politeístas que adoravam esculturas e a elas ofereciam sacrifícios. No entanto, na tentativa de me provarem o quanto eu estava no caminho errado, recitavam, passagens do antigo testamento, de uma época que Cristo era só uma profecia. Eu achava isso contraditório e quando tinha paciência respondia que uma nova lei substitui as anteriores e que na qualidade de “evangélicos”, achava adequado que eles se ativessem ao Evangelho e que fossem orar por mim, me deixando em paz, afinal em que poderia tanto incomodá-los tanto, se eu nem professava a mesma fé que eles?

Eu não podia imaginar que ali, naquela época, década de 80 tudo estava apenas começando.

Num enterro de um amigo querido, eu escalavrada, tive que passar por hordas neopentecostais, que desrespeitosamente, falavam nos meus ouvidos sem parar sobre uma necessidade que nem me lembro porque realmente não era o que eu precisava naquele momento.

Em outra ocasião, vi esses grosseiros de deus importunando, atrapalhando um ritual de umbanda num, cemitério. É comum, por ocasião de finados, alguns terreiros levarem oferendas aos cemitérios e acontece de algumas entidades associadas ao mistério da morte e da vida — transformação, “descerem” em seus “cavalos” dando “consulta” (gratuita) ou conselhos. Estarrecida fiquei me perguntando o que essas pessoas que seguem outras correntes religiosas vão fazer no cemitério nesse dia em vez de estarem nas suas igrejas orando.

Certo dia, observei perto da minha casa, um carrinho desse de venda de comida na rua, onde estava escrito: “acarajé abençoado.”
Abençoado por quem, segui meu caminho a me perguntar.

De modo que nesse ano que não tivemos natal naquele auge da histeria coletiva que toma o mundo nessa época, imaginei que o nosso aniversariante importante poderia se tornar protagonista. Imaginei errado. As pessoas preferiram maldizer as restrições dos comércios. Apesar de viver num ambiente classe baixa, não reparei muita gente reclamando dos preços dos produtos ditos natalinos.

E agora é a minha vez! Chegou a minha data preferida do ano. Não vai ter festa pública, a cidade não vai ser invadida por turistas. ou pelo menos não deveria ter… A recomendação é ficar em casa, evitar aglomeração, pois que estamos no auge da segunda onda da covid 19, onde as autoridades governamentais fazem ainda menos que na primeira. Temos no governo uma espécie de personagem novelesco, negacionista que a cada dia fala atrocidades impensáveis e inacreditáveis; orgulhoso da sua ignorância, vaidoso da sua arrogância e destemor de exibir toda a sua calhordice. Então, eu que sempre fiz questão de na virada estar em locais pelo menos bonitos, de preferência em praias a céu aberto a fim de olhar as estrelas e ter certeza de que poderia ser ouvida pelo Universo, dessa vez fico em casa muito tranquila e feliz pela vida que segue fluindo no meu corpo; por todas as competências descobertas no cenário de enclausuramento ao qual estou ainda muito fiel. Pela possibilidade de encontrar vida além daquela vida besta que sempre levava. Ainda que muito ciente que home office não é solução, muito pelo contrário, que “estamos completamente ferrados e mal pagos” por pertencermos a uma civilização(?) que não pegou o grande lance da história que é se reformular, se refazer , se modificar. A população precarizada não entendeu que essa é hora de parar de correr feito boba atrás dos produtos que a propaganda informa ser o melhor; as mulheres não perceberam que é hora de mandar às favas os padrões estéticos inatingíveis; que chegou o momento de incluirmos as culturas originárias e negras, seus ensinamentos porque as filosofias ocidentais hegemônicas nada fazem além de nos espremer feito processador que extrai suco das frutas.

Talvez se eu não tivesse esses pensamentos descolonizados, eu estaria bem triste, mas minha pele negra e antepassados indígenas me deram bem mais que um lombo pra apanhar. Enquanto isso, nas favelas ao meu redor, os fogos não param.

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